PRÁTICAS, REPRESENTAÇÕES E PODER:UMA HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (1950-1978)
MANCEBO, Deise
INTRODUÇÃO
Este trabalho é uma síntese da pesquisa realizada entre os anos de 1992 e 1994, que teve como objetivo geral a construção histórica de uma instituição universitária específica, desde a sua criação, em 1950, até finais dos anos 70. Trata-se da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro, inserida num espaço urbano complexo - a cidade do Rio de Janeiro, com a qual manteve, ao longo do tempo, uma estreita relação.
Tive a intenção, no desenvolvimento desta pesquisa de romper com o tipo de literatura que localizei a respeito desta Universidade, o território estrito da memória pessoal e, ao mesmo tempo, escapar de algumas "ciladas" comuns na História e já criticadas por outros autores. Primeiro, no sentido de marcar os vínculos e relações desta instituição com as complexas conjunturas estaduais e nacionais, nas quais se viu envolvida e se envolveu, mas sem transformar o Estado e seus interlocutores mais diretos nos principais atores das mudanças sentidas na Universidade.
Depois, tive a intenção de tomar o processo de constituição da Universidade, de forma que as experiências, os projetos e as lutas dos que se opuseram, perderam ou foram afastados também fossem contemplados. Procurei realizar uma pesquisa que não se fixasse somente nos "resultados", nas Leis aprovadas, nos projetos hegemônicos.
Por fim, procurei estabelecer o sempre fértil "diálogo entre a conceptualização e a confrontação empírica" . Neste sentido, "categorias de análise foram utilizadas mas sem operar uma aderência da Universidade a modelos, ou estabelecer causalidades estanques, que pudessem transformar a história desta instituição num epifenômeno de determinações pré-estabelecidas".
Por opção teórica, este estudo começou pela análise desta instituição específica e, através do seu aprofundamento, fui penetrando na cadeia de relações que a constituíram. Seguindo Chartier, tentei captar o que marcou a Universidade em sua trajetória, a partir de uma apreensão que, ao mesmo tempo, era "pontual e global". Buscava, no interior da UERJ - nos seus sujeitos sociais, nos discursos construídos, nas práticas acadêmicas e administrativas implementadas - a trajetória construída para a instituição. Esta construção foi marcada por concessões, alianças e embates internos e externos, pela criação de hierarquias e regras de funcionamento e pela elaboração de pautas culturais de comportamento próprias, caracterizando uma "absorção - construção" muito singular do econômico, político e social.
Mesmo ciente das distâncias existentes entre a História Cultural de Roger Chartier, desenvolvida no campo das práticas de leitura e a pesquisa que propunha, a ser implementada no espaço das práticas institucionais, procurei estabelecer um diálogo com este autor, para a eleição das categorias teóricas. O ponto de partida foi o reconhecimento, localização e análise das práticas que marcaram a Universidade, respeitadas em sua multiplicidade. A partir das práticas educacionais ou institucionais que eram partilhadas, é que se buscou o estabelecimento das relações e as confluências com níveis mais gerais.
O mapeamento dos principais grupos constituintes da vida universitária também seguiu esta orientação. Não foram fixados de antemão. Procurei, seguindo os passos de Roger Chartier, um afastamento em relação a "uma concepção estritamente sociográfica que postula que as clivagens culturais são organizadas necessariamente de acordo com um corte construído previamente". A partir da análise das práticas institucionais também foi possível detectar as relações de poder na Universidade, já que elas não são neutras e visam marcar e delimitar posições.
Outra categoria teórica utilizada foi o conceito de representação, ou seja, os múltiplos sentidos através dos quais uma realidade é apreendida, o que implicou captar as "classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e apreciação do real", conforme os meios intelectuais próprios de cada grupo. Estas percepções do social não são, nesta acepção, discursos neutros e "embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam". Daí a necessidade de se procurar a relação entre os discursos enunciados com a posição institucional, grupal, etc. de quem os estava proferindo, de se detectar as alianças e partilhas que foram estabelecidas com grupos externos à Universidade, para a compreensão das concepções que nortearam as ações institucionais.
A terceira categoria utilizada na pesquisa, já implícita nas outras duas, foram as relações de poder, aprofundadas aqui a partir da concepção desenvolvida por Michel Foucault, particularmente o conceito de disciplina . Para este autor, as disciplinas, ou o poder disciplinar, são portadoras de um discurso que não se confunde com o da Lei, apesar de serem seu complemento necessário. Elas veiculam um discurso afeito à regra da normalidade e o seu código é o da normalização. É duplo o objetivo da disciplina, nesta acepção: fabricar corpos úteis e ao mesmo tempo submissos. Ela desenvolve os corpos em termos econômicos, de utilidade, e pretende diminuir estes mesmos corpos em termos políticos, no sentido da obediência, e da dominação acentuada. Conforme Foucault, através do exercício do poder disciplinar, ocorre a prescrição de táticas de intervenção sobre todos, criminosos ou não, desviantes ou normais e é articulado todo um campo de práticas preventivas, que visam diminuir o desejo de desviar. No nosso caso, alunos e professores foram submetidos a uma pressão constante para que se sujeitassem a um mesmo modelo, de subordinação, de docilidade, à exata prática dos deveres e da disciplina. Um conjunto de penalidades ínfimas foi sendo montado; comparando, diferenciando, hierarquizando, homegeneizando e também excluindo os que se opunham.
Foram várias as fontes utilizadas neste trabalho. Um primeiro grupo constituiu-se de diversos documentos oficiais da própria Universidade, escritos entre 1950 e 1980 (atas do Conselho Universitário, os Boletins da Universidade, atas das reuniões das Congregações de algumas unidades, periódicos regulares, relatórios da Reitoria e processos do Arquivo Geral da Universidade), legislação pertinente e dezesseis vídeos do Centro de Tecnologia Educacional da Universidade, montados a partir da década de 80, onde constavam entrevistas com ex-Reitores e alguns funcionários antigos. Estas fontes foram ricas por expressarem, principalmente, as práticas, projetos e concepções dos grupos hegemônicos, que mantiveram o controle da Universidade, nos seus diversos períodos. Retratavam, também, o movimento imprimido à Universidade, pelos que ocuparam estas posições-chave de poder, suas regras, as normas instituídas.
As obras e artigos sobre a Universidade constituíram outro grupo de fontes analisadas, a partir de um levantamento feito nas bibliotecas da própria instituição, arquivos das unidades e do acervo pessoal do ex-Reitor Haroldo Lisboa da Cunha. Apesar do pequeno porte, a maioria pequenos artigos e materiais mimeografados, esta bibliografia ofereceu, mais do que as fontes propriamente documentais, análises e avaliações, permitindo uma apreensão qualitativamente superior, quanto a este aspecto.
Foram realizadas 26 entrevistas com lideranças e figuras pregnantes dos principais grupos formais e informais, contemplando não só aqueles cujos projetos permaneceram, mas também aqueles cuja inserção institucional levou à exclusão e ao silêncio. Abrangeram professores e ex-alunos, em suas histórias não-escritas e abafadas e não foram tratadas com o objetivo de responder perguntas, que outras fontes não conseguiram realizar, apesar de, por vezes, isto ter ocorrido, mas de abrir novas questões, novas perspectivas de análise, de estabelecer relações e articulações novas, para cada período estudado. Sem dúvida, foram extremamente ricas, no sentido de captar os "climas" institucionais.
No trato destas fontes, encontrei nas formulações da "Análise de Discurso" uma problematização importante, particularmente, pelo relevo que dispensa, ao processo e às condições de produção do discurso. Assim, tanto os materiais escritos, como os orais foram trabalhados não somente como fontes de transmissão de informação, mas principalmente como "efeitos de sentidos entre interlocutores", enquanto parte da dinâmica institucional e "do funcionamento social geral... (no qual) os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, isto é, as condições de produção constituem o sentido da seqüência verbal produzida". Os textos, nesta perspectiva, foram tratados não apenas como documentos, que ilustram uma determinada situação em que foram construídos - objetivo central da "Análise de Conteúdo" - mas como monumentos, situação em que se levou em consideração "a historicidade inscrita neles".
RESULTADOS ENCONTRADOS
No intento de dar historicidade à instituição, de construir sua memória, percorri o traçado das escolas que lhe deram origem, procurando detectar os motivos que levaram à sua fundação, analisei o sentido de seu desenvolvimento de "conglomerado de escolas isoladas" para uma instituição burocraticamente centralizada; discuti os projetos que se tornaram hegemônicos a partir da década de 60, as resistências advindas à implantação destes projetos e a política construída pelas autoridades universitárias no sentido de eliminar as divergências.
Neste percurso, ficaram alguns registros mais pregnantes sobre a Universidade, traços mais fortes que lhe deram uma certa identidade: os resultados desta investigação.
A Universidade foi fundada através da Lei Municipal nº547 de 4 de dezembro de 1950, com o nome de Universidade do Distrito Federal (UDF), a partir da junção de quatro escolas particulares em dificuldades financeiras. Este primeiro recorte temporal, no entanto, teve que se estender um pouco para o passado, para que pudesse percorrer, mesmo que sinteticamente, a trajetória destas quatro Faculdades privadas que lhe deram origem, todas criadas na década de 30, durante o período varguista. No estudo das escolas-fundadoras, a principal intenção foi captar o legado levado para a nova Universidade, no que se refere a experiências acumuladas, práticas desenvolvidas, concepções formuladas, patrimônio físico e cultural adquirido.
Deste estudo concluí que a segunda UDF nasceu da confluência de um conjunto de interesses de ordem pragmática. A conjuntura era favorável à estatização de instituições privadas de ensino superior: havia facilidades legais para tal empreendimento e vivia-se um clima nacional de expansão educacional, no início dos anos 50. Motivações de ordens diversas se somaram, então, a este clima, possibilitando o "restabelecimento" da Universidade do Distrito Federal: os estudantes anteviam na fundação a possibilidade de barateamento das mensalidades; os professores tinham interesse em alçar novas titulações - de professores catedráticos universitários, e os donos das quatro Faculdades-fundadoras alimentavam a esperança de captar recursos públicos para suas escolas.
No entanto, na sua fundação, para o qual tantos interesses convergiram, havia uma lacuna, que, desde o nascedouro, iria deixar marcas na nova instituição: a insuficiência de preocupações propriamente educacionais e acadêmicas. A Universidade nasceu a partir de unidades isoladas, sem experiências anteriores acumuladas, autônomas do ponto de vista patrimonial, financeiro e administrativo, voltadas exclusivamente para um ensino de qualidade duvidosa, salvo exceções. A segunda UDF, ao contrário da sua homônima, não foi forjada pela necessidade de provocar um corte no arcaísmo e tradicionalismo universitários, ou por um projeto de modernização governamental e nem pela motivação acadêmica de intelectuais, movidos pela imposição de produzir conhecimentos originais. As críticas à Universidade brasileira, já presentes no ideário nacional, não estavam contempladas nesta nova escola de ensino superior e sua fundação foi marcada por práticas e concepções que visavam à mera continuidade da situação acadêmica anterior das escolas-fundadoras, sem rupturas.
A concorrência pragmática de interesses, visando a um fim útil e imediato para as partes envolvidas esteve presente, não só no ato de fundação. Práticas semelhantes reapareceram, em outras conjunturas, nas formas institucionalizadas que foram construídas para a Universidade. O determinante central para a mudança do regime jurídico da Universidade, enquanto fundação, em 1961, foi o interesse particular dos professores em acumular empregos públicos . A construção do complexo arquitetônico do Campus teve como motivação eliminar os "feudos" ainda existentes nas escolas e o fortalecimento do grupo que detinha o poder institucional. A tentativa de implantar o ensino "utilitário", uma política de esportes e de civismo, a partir do ano de 1968, foi uma resposta às resistências do movimento estudantil. Nestas ocasiões e em outras passagens detectadas na pesquisa, não houve uma reflexão, por parte do corpo dirigente, quanto às implicações destas mudanças introduzidas na Universidade para o seu funcionamento propriamente acadêmico.
A palavra "pragmatismo", por definição, a despeito dos diversos sentidos que permeiam o vocábulo, vem associada a atitudes antiintelectualistas e antiteoricistas : outro traço marcante na Universidade. Nas três décadas que percorremos, nenhum planejamento institucional para a produção de novas tecnologias e conhecimentos renovadores foi desenvolvido. As escolas-fundadoras já funcionavam sob esta tradição e, mesmo em início dos anos 60, quando a Universidade teve a oportunidade de reverter esta quadro, já que passou a haver entrada regular de verbas por dispositivo da Constituição Estadual a situação não se modificou. Os recursos captados não foram aproveitados para o desenvolvimento das atividades científicas, mas para a construção do Campus. Em 1968, A Reitoria elaborou um planejamento global para a Universidade designado Plano Integrado de Desenvolvimento da UEG (PID). Neste, somente o ensino era propalado, diretamente vinculado às necessidades do mercado, o que acabou por aprofundar a tendência antiintelectualista. O ensino proposto no PID não se abalizava por preocupações de inovação acadêmica. Visava, em contrapartida, desestruturar os territórios de contestação da Universidade e projetá-la como um celeiro de formação de mão-de-obra dócil e de atividades instrumentalizadas para o desenvolvimento do status quo.
Outra marca da instituição, no período, foi a ênfase na consolidação patrimonial e, neste sentido, a edificação do Campus constituiu-se no grande projeto de crescimento da Universidade. O Campus foi projetado como um conjunto arquitetônico racional, com características monumentais para a época , que, a um só tempo, deveria alocar mais confortavelmente o pessoal universitário, permitir um exercício administrativo mais centralizado e racional, além de fortalecer o grupo que então exercia o poder universitário. Alimentou, ainda, a crença da Universidade alcançar, sob tais condições, uma posição de destaque no cenário universitário do país. Viabilizar o término das obras foi o grande objetivo a ser alcançado ao longo de onze anos . Sob a liderança dos dirigentes, dos arquitetos responsáveis pela obra e com o apoio de grande parte dos docentes, a construção do Campus ocupou um lugar de destaque na cena institucional e os poucos projetos acadêmicos em desenvolvimento, a qualificação profissional e a melhoria do ensino ficaram para o futuro.
O próprio texto da Lei da Reforma Universitária, que indicava a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, não fez eco na Universidade. A forma de recrutamento dos quadros, através de convites, o subjugamento dos novos professores aos velhos catedráticos e depois à administração central, a inexistência de carreira e condições de trabalho estimuladoras do crescimento intelectual, a absorção da maior parte dos recursos captados para a construção do Campus, dentre outros fatores, só reforçaram a característica reprodutora da Universidade, em detrimento da produção original do conhecimento e transmissão da cultura.
A dinâmica institucional que presidiu a implementação dos projetos prioritários caracterizava-se por uma extrema centralização em torno da administração e da Reitoria. A partir dos anos 60, foram criadas normas e regras cada vez mais meticulosas no intuito de disciplinar e tornar a Universidade mais homogênea. Ao mesmo tempo, as unidades eram despontencializadas quanto à possibilidade de assumir responsabilidades e tomar decisões. A aprovação da Lei 5540/68, a Lei da Reforma Universitária, e demais legislações que lhe seguiram e antecederam, favoreceram e, em alguns casos, impuseram uma dinâmica centralizada às instituições universitárias brasileiras. No caso da então UEG, este movimento não foi imposto, de fora, pelos militares e os seus tecnocratas. Muito antes de 1968, já era esta a convicção dos dirigentes universitários e o clima nacional só veio consolidar, justificar e fortalecer opções administrativas há muito assumidas. Neste sentido, a UEG antecipou-se ao silêncio imposto às Universidades no pós-64 e, particularmente, no pós-68, marginalizando, bem antes, a comunidade acadêmica da discussão dos destinos de sua própria instituição.
Cabe destacar, no entanto, que esta centralização em torno da Reitoria e sua máquina administrativa não operou qualquer ruptura na estrutura atomizada das Faculdades e Institutos. Nem mesmo a construção do Campus, que agrupou geograficamente a maioria das unidades num único prédio, promoveu um corte no "conglomerado" de escolas. A fragmentação permaneceu, só que assentada agora numa radical separação entre quem decide e quem executa. A unificação proclamada e realizada deu-se por critérios extrínsecos às funções básicas da Universidade - o ensino, a pesquisa e a extensão - norteada pela administração burocrática. Não foi um erro de estratégia, um desvio casual e inesperado. Ao contrário, a permanência da dispersão obedeceu a um princípio mais básico e caro aos dirigentes de então: separar para melhor controlar.
A construção deste "comando único", no entanto, não teve como corolário um exercício de poder, na Universidade, localizado exclusivamente no centro. O controle foi organizado também através da intervenção sobre o corpo (e alma) de cada indivíduo, através do uso de práticas preventivas e disciplinares, especialmente quando se tratava de estudantes. Para estes, foram criados programas cívicos, esportivos e um Departamento de Alunos, visando à contenção de suas atividades reivindicatórias. Muito além da lógica meramente repressiva e negativa, foram incentivadas práticas e criados canais para a sua expressão que incitavam ao sucesso, à adesão, ao bem-estar e ao prazer, daí a sua suposta aceitação. Localizamos, ao lado de toda uma legislação emanada da ditadura e das regras internas da Universidade, um conjunto minucioso de coerções disciplinares, que tinham por objeto "a coesão deste corpo social" e a implantação da política educacional hegemônica na Universidade.
Por fim, marcaram a vida desta instituição, as alianças elaboradas e os compromissos daí decorrentes. A criação do Estado da Guanabara, em 21 de abril de 1961, foi um marco importante para a Universidade, pois neste momento de sua trajetória começa o estabelecimento de fortes relações de colaboração entre os dirigentes universitários e os Governos estaduais. O denominado "esvaziamento" da Cidade do Rio de Janeiro e a transferência do centro político para Brasília tiveram peso na consolidação destes laços. O próprio Governador Carlos Lacerda entendia que a Universidade poderia se transformar no "viveiro dos líderes, centro de formação dos dirigentes, não apenas na vida intelectual, mas no progresso técnico e profissional da comunidade". A colaboração e apoio, entre Universidade e Governo Estadual, implicaram, para a instituição em estudo, a possibilidade de receber incentivos políticos e financeiros, que culminaram em sua consolidação patrimonial, o fortalecimento organizacional, principalmente da Reitoria e sua máquina administrativa, e o estabelecimento de um exercício minucioso e molecular de poder para fazer frente ao setor estudantil, no qual se localizou a resistência à política imprimida na Universidade pelos dirigentes.
A partir de 1968, este colaboracionismo assume contornos mais nítidos e explícitos, agora com o Regime Militar, endurecido após a promulgação do Ato Institucional nº 5. Projetos e concepções em comum são organizados e defendidos, como a idéia da "Universidade-empresa" e o desenvolvimento do Projeto Rondon, que tendo como nascedouro a própria Universidade, tornou-se o mais significativo, pelo destaque alcançado à época.
A Universidade, a despeito destas marcas e regularidades apontadas, não se apresentou como uma estrutura monolítica, ao longo das três décadas estudadas. Ao contrário, para cada um dos aspectos aqui destacados, sempre havia projetos que se contrapunham, grupos que divergiam da tendência hegemônica, outras concepções de Universidade, de organização da vida acadêmica e de exercício de poder que circulavam no cenário institucional.
Do ponto de vista acadêmico, por exemplo, setores da área biomédica sempre se opuseram à política de investimento patrimonial e à opção predominante pelo ensino. Fizeram frente a essas tendências e conseguiram, apesar das extremas dificuldades, construir espaços, com práticas diferenciadas, nos quais a pesquisa e a qualidade acadêmica eram preocupações centrais.
Neste campo das práticas desviantes, no entanto, o principal protagonista foi o movimento estudantil. A despeito de suas divergências internas, os estudantes insistiram, com paixão, coragem e ousadia, em pautar práticas distintas daquelas que predominavam na instituição. A "Universidade Crítica" postulada pelos alunos, baseava-se em modelos participativos e descentralizados de exercício de poder, combatia a concepção educacional reprodutora e tecnicista, reivindicava um ensino que atendesse às "principais necessidades da população".
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Espero que esta pesquisa tenha preenchido, ainda que parcialmente, uma lacuna: a ausência de análises históricas sobre instituições de ensino superior específicas, que não recaiam sobre os grandes modelos nacionais, sob diversos matizes (a Universidade de São Paulo, a Universidade do Distrito Federal de 1935, a Universidade de Brasília, a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro). A Universidade do Estado do Rio de Janeiro não teve, e não tem, um perfil educacional e uma produção científica de projeção modelar, o que também pode ser afirmado sobre outras dezenas de Universidades existentes no país. Assim, sabia estar percorrendo a trilha de uma instituição que não tinha, em seu passado, um destaque no cenário nacional. Construí uma história que não correspondia à dos modelos que estão presentes na historiografia, mas que, por apresentar paralelos com muitas outras instituições de ensino superior do país, pode falar de perto e a cada instante, sobre o seu quotidiano, mesmo que, neste trabalho, a referência seja uma única instituição. Além disto, o fato da Universidade ser estatal, mas não federal, apresentou interessantes possibilidades de análise, no sentido de captar as articulações da instituição com as conjunturas vividas na unidade da Federação onde se localiza. Considerados estes aspectos, acredito ter lançado pistas para o desafio de alcançar explicações mais abrangentes e conclusivas, não só para a compreensão do passado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mas também para o entendimento e modificações do presente dela própria e de outras instituições de ensino superior.
Por fim, cabe destacar que os resultados obtidos neste trabalho, o alcance do que a Universidade teve de particular e próprio, foram possíveis pelo cruzamento permanente entre as práticas e representações que a permearam, com as relações de poder que as cimentavam. Ao mesmo tempo, a atenção ao fato de que uma única instituição é sempre impotente para gerar sua própria interpretação foi fundamental para detectar a interseção da dinâmica da Universidade com as concepções e práticas que marcaram o ensino superior no país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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