A UDF: UMA UTOPIA VETADA?
Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero*
1. SITUANDO O PROBLEMA
Para apreender melhor o significado da criação dessa Universidade, entendo ser necessário retornar ao início dos anos 30, quando importantes transformações, que vinham sendo gestadas nas primeiras décadas do século, assumem uma dimensão mais ampla. Com essa preocupação, lembro que, se a Primeira República é marcada pela descentralização política e administrativa, a partir de então, essa tendência se reverte e começa a haver acentuada e crescente centralização nos mais diferentes setores: surge um aparelho de Estado mais centralizado, e o poder se desloca cada vez mais do âmbito local e regional para o do governo central.
Em decorrência, são elaboradas políticas de caráter nacional - aqui se incluem as de educação - através de controle e de mecanismos autoritários e repressivos, que melhor se explicitam no Estado Novo.
Nesse contexto, o governo elabora, durante a década de 30, seu projeto universitário, adotando medidas, entre as quais se destacam a promulgação do Estatuto das Universidades Brasileiras, a reorganização da Universidade do Rio de Janeiro e a criação do Conselho Nacional de Educação, em 1931, passando pela proposta de reestruturação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1935, e pela institucionalização da Universidade do Brasil, em 1937, como modelo padrão para as demais universidades existentes no País.
Nesse período, observa-se a existência, por parte dos que estão no poder, de uma preocupação em homogeneizar as iniciativas educacionais e as normas básicas orientadoras dos seus rumos, segundo interesses em fase de consolidação.
A tendência de homogeneização em ternos de instituições de ensino superior fica muito clara na exposição de motivos do Ministro Francisco Campos, ao encaminhar seu projeto de reforma, quando assinala que "(…) a reorganização da Universidade do Rio de Janeiro constituirá o modelo para as Universidades e os Institutos equiparados, sendo adotadas as normas instituídas para o regime universitário no Estatuto das Universidades Brasileiras. Nelas ficam incorporados os Institutos de Ensino Superior da Capital da República, dependentes do Ministério da Educação e Saúde Pública, acrescidos da Escola de Minas de Outro Preto e da Faculdade de Educação, Ciências e Letras, criada no projeto" (Campos, 1931).
Essa definição do Ministro soa mais forte quando se tem presente, de um lado, que suas idéias sobre política educacional têm subjacente a crença de que a reforma da sociedade se faz mediante a reforma da escola e, de outro, a certeza de que ao Estado cabe a responsabilidade e o controle da educação. Nesse sentido, o decreto que cria e regulamenta o Conselho Nacional de Educação, em 1931, associado ao que dispõe sobre o Estatuto das Universidades Brasileiras e ao relativo à Reforma do Ensino Secundário, ambos promulgados nesse mesmo ano, são bastante elucidativos.
Apesar da tendência à homogeneização, reflexo da política centralizadora e autoritária do Governo em relação às instituições universitárias nos anos 30, houve iniciativas que expressaram posições contrárias. Destacamos, em especial, as criações da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (1933), da Universidade de São Paulo - USP (1934) e da Universidade do Distrito Federal - UDF (1935), objeto desta comunicação.
Para estudar a UDF, sentimos ser necessário relacioná-la com os demais grupos e instituições existentes nos anos 30 preocupados com a elaboração de um projeto político- -pedagógico, em especial, para a Universidade. Para apreender a história dessa instituição, ir além do empiricamente observável, percebemos ser importante ter presente não só o seu significado e o seu papel, mas também deixar claro quais atores atuam nesse projeto e a cidade onde ele é implantado.
No trabalho com as fontes documentais, procuramos captar, sempre que possível, as relações entre os modos de organização e de atuação dessa Universidade e as intenções das pessoas que a idealizaram, a produziram ou defenderam seu impedimento. Tal encaminhamento, porém, não foi fácil, pois não podemos ter a ingenuidade de supor que a investigação dos dados disponíveis, dos fragmentos que trabalhamos, pudesse dar conta do todo que se objetivava restaurar. Havia de nossa parte consciência, como nos ensina Kosik, de que "existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente" (1976:13). E de que a realidade não se apresenta ao pesquisador à primeira vista, "apresenta-se como um campo em que exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata prática da realidade" (Ibid.:10). Daí o trabalho com as fontes constituir-se um verdadeiro exercício, no qual o pesquisador deverá procurar apreender não só o que é dito, mas o que não foi dito.
Com essas preocupações, fomos aos arquivos fazer uma garimpagem de fontes referentes à história dessa instituição; procuramos desnudar, entender, o que às vezes se ocultava/ exibia por detrás do aparente da história da UDF.
2. A UDF: DA IDÉIA AO PROJETO
A Universidade do Distrito Federal - UDF é instituída no Rio de Janeiro, capital da República, pelo Decreto Municipal nº5.513/35, como parte de um programa integrado de Instrução Pública para o Distrito Federal, liderado por Anísio Teixeira, entre 1931 e 1935. À frente da Secretaria de Instrução Pública, nesse período, Anísio organiza uma rede municipal que vai da escola primária à universidade, e faz dela, junto com seus colaboradores, um poderoso campo cultural que interfere na vida urbana e, ao mesmo tempo, produz conhecimentos sobre ela (Nunes, 1992:159).
Dada a natureza das transformações pelas quais passava o País nos anos 30, como foi assinalado, e dos conflitos existentes, o processo de estruturação e direcionamento do sistema de ensino na capital da República não ocorre sem problemas. Nesse período conturbado, a administração de Anísio Teixeira recebe, como mostra Paschoal Lemme, um de seus colaboradores, "todo o impacto dos acontecimentos contraditórios nele verificados" (1988:122).
As iniciativas de Anísio à frente da Secretaria tiveram não só um caráter de ampliação e consolidação do legado que recebera, em termos de modernização do sistema escolar, iniciado nas administrações anteriores, como a de Carneiro Leão (1922-1926) e, especialmente, a de Fernando de Azevedo (1927-1931), mas foram marcadas por características muito peculiares na consecução dos objetivos visados, o que provocou oposições radicais, mas também apoio de elementos respeitáveis do magistério carioca (ibid.: 121).
Importante lembrar que, desde o início, Anísio sabia que "a luta seria longa e árdua, mas estaria disposto a enfrentá-la, por ter consciência que o coração dessa guerra estava no Distrito Federal" (Viana Filho, 1990). Isso fica claro em correspondência dirigida a Fernando de Azevedo, na qual ele comenta : "Creio já lhe haver dito que é minha impressão não ser possível travar, no Brasil, a batalha educacional, antes de vencermos a peleja do Distrito Federal" (Apud Viana Filho, 1990:65). Tinha ele razão: a cidade do Rio de Janeiro não era apenas a capital cultural do Brasil, mas também sede do poder central, das relações de mando e de tomadas de decisões políticas.
A estruturação do sistema público de ensino se fez, como foi dito, perpassada por conflitos, os quais se aguçam, sobretudo, com a criação da Univerdidade que, para Anísio, se apresenta como o ápice de um processo. A respeito, diz Hermes Lima: "Exatamente como acontecera quando da introdução do ensino secundário [técnico] no sistema escolar municipal, nasce a Universidade sob o fogo de seus opositores" (1978:182). Brandiam contra essa instituição, principalmente, o argumento ideológico de que ela "Seria uma Universidade esquerdista, senão comunista, qualificação mágica pela qual o sectarismo integralista" (Ibid.:183) e os católicos qualificavam qualquer iniciativa ou atitude inconveniente aos princípios por eles defendidos.
A oposição a Anísio Teixeira, por parte do grupo dos católicos, transforma-se em acusação aberta a partir de 1935 (Horta, 1994:40). Em julho desse ano, Alceu Amoroso Lima escreve ao Ministro Gustavo Capanema uma carta, na qual afirma a posição dos católicos e deixa claro que eles esperam do Governo "uma atitude mais enérgica de repressão ao comunismo". Assinala que "para garantir a estabilidade das instituições e a paz social" era preciso o Governo: "organizar a educação e entregar os postos de responsabilidade nesse setor importantíssimo a homens de toda a confiança moral e capacidade técnica (e não a socialistas como o Diretor do Departamento Municipal de Educação" (GC/ Lima, A. série b, doc.16, CPDOC/FGV).
Essa reação fica mais clara quando, explicitamente, o líder católico volta-se contra as realizações de Anísio, principalmente a Universidade. Diz ele:
O espetáculo do Brasil de hoje ofereceu-nos a oportunidade de algumas condiderações, que sou levado a repetir-lhe por carta, não só pela nossa velha amizade, mas ainda por ser você a mais alta autoridade de nossa organização educativa. A recente fundação de uma Universidade Municipal, com a nomeação de certos diretores de Faculdades que não escondem suas idéias e pregação comunistas, foi a gota d'água que fez transbordar a grande inquietação dos católicos.
Para onde iremos por esse caminho? Consentirá o governo em que, à sua revelia mas sob a sua proteção, se prepare uma geração inteiramente informada dos sentimentos mais contrários à verdadeira tradição do Brasil e aos verdadeiros ideais de uma sociedade sadia? (GC/ Lima, A., série b, doc.16. CPDOC/ FGV).
Apesar de ter existido por um período inferior a quatro anos, a UDF marca significativamente a história da universidade no Brasil, sobretudo levando-se em conta o contexto em que se dá sua criação (1935) e sua extinção (1939), em pleno Estado Novo, por meio do Decreto Federal nº 1.063/ 39.
Em termos de projeto, é de se destacar a dimensão cultural atribuída à Universidade do Distrito Federal, contida nos "considerando introdutórios" ao Decreto nº 5.513/ 35, por intermédio dos quais se justifica a necessidade de sua instalação. Tais considerandos, como veremos a seguir, explicitam a sua função cultural.
• A cidade do Rio de Janeiro constituiu um centro de cultura nacional de ampla irradiação sobre todo o País.
•O desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística é essencial para o aperfeiçoamento e o progresso da comunidade local e nacional.
•À cidade do Rio de Janeiro compete o dever de promover a cultura brasileira do modo mais profundo que for possível.
• O número de estudantes do Distrito Federal e o dos que afluem dos outros Estados ao Centro de Cultura do País é de tal ordem, que justifica a existência de mais de uma universidade.
• Em conseqüência, considera-se ser, assim, dever do Estado a fundação da Universidade do Distrito Federal e, além disso, essa é a forma de consagrar pela autonomia cultural a atual autonomia política.
Coerente com esses pressupostos, Anísio Teixeira finaliza o discurso proferido na inauguração dos cursos da Universidade (31.07.35), com as seguintes palavras: "Dedicadas à cultura e à liberdade, as Universidades estão sob um signo sagrado que as faz trabalhar e lutar por um mundo de amanhã, fiel às grandes tradições liberais da humanidade" (Teixeira, 1936:132).
Procura mostrar também como deve se processar a relação entre universidade, cultura e aperfeiçoamento dentro da sociedade brasileira, e como aquela instituição poderá contribuir para superar distorções então presentes nas atividades intelectual e cultural no País, e adverte: "A cultura brasileira se ressente, sobretudo, da falta de quadros regulares para a sua formação. Em países de tradição universitária, a cultura une, socializa e coordena o pensamento e a ação. No Brasil, a cultura isola, diferencia, separa" (Ibid.: 128). Para Anísio, a heterogeneidade e a deficiência dessas diferentes culturas individuais e individualistas fazem com que o campo de ação intelectual e pública, no Brasil, se constitua um campo de lutas mesquinhas e pessoais, em que se entredevoram, sem brilho e sem glória, os parcos homens de inteligência e de imaginação que ainda possuímos (Ib.).
A Universidade que se inaugura tem como preocupação preparar quadros intelectuais e acabar com o isolamento denunciado. De acordo com as palavras de Anísio, à Universidade cabe destruir esse isolamento, porque a ela compete socializar "a cultura, socializando os meios de adquiri-la". A identidade de processos, a identidade de vida, e a própria unidade local fará com que nos cultivemos, em sociedade. Que ganhemos em comum a cultura" (Ib.: 129). E insiste: "o isolamento e o autodidatismo nacionais fazem-nos incoerentes, paradoxais, irritadiços e extravagantes. A opinião intelectual de um país é o reflexo de seus meios e de processos de cultura. A universidade nos vem dar disciplina, ordem, sentido comuns e capacidade de esforço em comum" (Ib.: 130).
Em suma, de acordo com o explicitado nesse discurso, a fonte para a criação da identidade de um povo e do caráter nacional é a universidade. Nada mais natural do que se construir isso através da UDF, sediada na capital da República, indiscutivelmente um dos grandes pólos nacionais de irradiação cultural. É necessário, todavia, que a própria universidade contribua para o combate do autodidatismo e do isolamento intelectual. A Universidade que acaba de ser instituída tem como um de seus propósitos constituir-se em núcleo de formação intelectual do país, até aquele momento "formado ao sabor do mais abandonado e precário autodidatismo". Nessa direção, Anísio é incisivo: a Universidade não tem "nenhuma 'verdade' a dar, a não ser a única verdade possível, que é a de buscá-la eternamente". Pois "o saber não é um objeto que se recebe das gerações que se foram, o saber é uma atitude de espírito que se forma lentamente ao contato dos que sabem" (Ib.: 124).
Na perspectiva do eminente educador, trata-se menos de preparar quadros, formados por indivíduos com domínio do saber existente e da experiência humana acumulada, ou formar pessoas competentes em ofícios úteis, do que criar um ambiente de saber, facilitador da participação de todos na formação intelectual da experiência humana.
Na mesma perspectiva ainda, para o idealizador da UDF, "A Universidade é, pois, na sociedade moderna, uma das instituições características e indispensáveis, sem a qual não chega a existir um povo. Aqueles que não as têm, também não têm existência autônoma, vivendo, tão-somente, como reflexo das demais" (Ib.: 123).
Com essas preocupações, é criada a UDF em 1935, constituída de cinco escolas, além de instituições complementares: a Escola de Ciências, o Instituto de Educação, a Escola de Economia e Direito, a Escola de Filosofia e Letras e o Instituto de Artes. Para Anísio, "a função da Universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata, somente, de difundir conhecimentos. O livro, também os difunde. Não se trata, somente, de conservar a experiência humana. O livro também a conserva. Não se trata, somente, de preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou artes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em último caso, escolas muito mais singelas do que as universidades (Ib.:124). Trata-se, insiste ainda: "de manter uma atmosfera de saber pelo saber para se preparar o homem que o serve e o desenvolve. Trata-se de conservar o saber vivo e não morto, nos livros ou no empirismo das práticas não intelectualizadas. Trata-se de formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva" (Ib., ibid). Com essas palavras, ele chama a atenção para um problema fundamental: uma das características da universidade é ser um locus de investigação e de produção de conhecimento.
Uma das exigências para a concretização dessa proposta é, sem dúvida, o exercício da liberdade e a efetivação da autonomia universitária. Como pensar, porém, em autonomia universitária no limiar do Estado Novo? Como pensar em liberdade nos termos defendidos, quando, a partir de 1935, a abertura, aventada pela Revolução de outubro de 1930, passa a ser vista como um erro a ser corrigido e quando, após o levante de 35, "o conceito de segurança nacional é reduzido à segurança contra o comunismo"? (Lima, 1978: 136-7).
Como pensar em liberdade de pensamento e autonomia universitária, quando a "pecha de comunista" passa a ecoar como a de um feiticeiro da Idade Média e "o atestado de ideologia converteu-se em complemento de cidadania prestante"? (Ib.:136).
Dentro desse contexto, nos últimos dias de 1935, Pedro Ernesto, Prefeito da capital da República, se vê discriminado por representantes do poder instituído. Mesmo tendo grande relacionamento na área política, está marcado e há, antes de tudo, como observa Hermes Lima, "um sacrifício-ritual a executar: o afastamento de Anísio Teixeira" (Id.: 137). Apesar de todas as pressões, o prefeito mantivera-o à frente da Secretaria Geral de Educação e Cultura por quatro anos. No contexto dos acontecimentos políticos daquele ano, a permanência de Anísio na Secretaria não é vista com bons olhos por parte dos grupos ligados ao poder e pela ala de educadores conservadores, sobretudo a católica, uma vez que muitos o encaram como conselheiro político do Prefeito e elemento ligado à insurreição comunista.
Embora Anísio Teixeira não tenha sido preso, como pedia a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, ele foi forçado a demitir-se, sendo substituído pelo ex-Ministro de Educação, Francisco Campos (Horta, 1994:41).
"O sacrifício de Anísio corresponde à prioridade da política clerical longamente mobilizada contra sua presença na liderança do sistema educativo carioca. No contexto dos acontecimentos, pura ilusão pensar que esse sacrifício salvaria o Prefeito" (Lima, ib.: 137). Como desfecho dessa situação, a 1º de dezembro de 1935, Anísio pede exoneração do cargo, aceita por Pedro Ernesto, após tecer-lhe grandes elogios e agradecer o trabalho desenvolvido pelo educador à frente da Secretaria.
Diante do clima de inquietação e do estado de guerra decretado no País, o destino do fundador da UDF não poderia ser outro: o seu afastamento das funções públicas que vinha exercendo. Exonerado do cargo de Secretário, Anísio recebe o imediato apoio de colaboradores nos serviços de educação do Distrito Federal, alguns dos quais integrantes dos quadros da Universidades e também demissionários. A partir de 1936, professores da Universidade, juntamente com outros intelectuais e educadores, são presos e demitidos, como: Hermes Lima, também diretor da Escola de Economia e Direito, Castro Rabello, Leônidas Rezende e Luiz Carpentier.
Nesse contexto, a liberdade e a autonomia universitárias, princípios norteadores do projeto de criação dessa Universidade, são atingidos e, aos poucos, a UDF vai ter de se "amoldar" aos padrões do poder central, até ser extinta.
3. A UDF: CENTRO DE ESTUDOS, DE CULTURA E DE PRODUÇÃO DO SABER
A UDF surge sob uma definição precisa e original do papel e das funções da universidade. O decreto que a institui justifica a necessidade de sua instalação e define como seus fins: "promover e estimular a cultura a concorrer para o aperfeiçoamento da comunidade brasileira; encorajar a pesquisa científica, literária e artística; propagar as aquisições das ciências e das artes pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular; formar profissionais e técnicos em diversos ramos e prover a formação do magistério em todos os seus graus".
Com essas preocupações, os primeiros anos da UDF são dedicados à organização de seus cursos e de seu corpo docente. Buscam-se na Europa professores para aquelas áreas nas quais se considerava não haver, no Brasil, profissionais suficientemente preparados. Correspondência de Afrânio Peixoto dirigida a Anísio Teixeira é ilustrativa de como poderiam ser efetuadas tais contratações (AT 35.04.10, doc.5, série t. CPDOC/ FGV).
Em um período em que a tradição brasileira de ensino superior se baseava no "ensino profissional de caráter utilitário", a institucionalização da USP (1934) e da UDF (1935) irá redirecioná-lo para ênfase na ciência básica e para um saber "desinteressado". De certo, naquele momento, essa mudança vai tornar necessárias as missões estrangeiras de professores, que deixam suas marcas, juntamente com professores brasileiros.
Há registros da presença e da atuação de professores franceses na UDF, em 1936, lecionando nas Escolas de Economia e Direito e de Filosofia e Letras. São eles: Émile Bréhier (História da Filosofia), Eugène Albertini (História da Civilização Romana), Henri Hauser (História Econômica), Henri Tronchon (Literatura Comparada), Gaston Leduc (Economia Social e Organização do Trabalho), Étienne Souriou (Psicologia e Filosofia), Jean Bourciez (Filologia das Línguas Românicas), Jacque Perret (Línguas e Literatura Greco-Romanas), Pierre Deffontaines (Geografia Humana) e Robert Garric (Literatura Francesa).
Na Escola de Ciências, registra-se a presença, em 1935 e 1936, de Viktor Leinz (Geologia e Mineralogia) e de Bernhard Gross (Física). Em 1937, apenas o primeiro deles permanece.
A presença desses estrangeiros marcou a UDF. Carta de Odette Toledo, Secretária de Universidade, dirigida a Anísio Teixeira, em 1937, confirma essa assertiva. Diz ela: "Os cursos dos franceses tiveram grande sucesso. Notáveis pelos resultados conseguidos com os alunos foram os de Geografia Humana - Deffontaines; História Romana - Albertini; Economia Social - Leduc. De grande repercussão social: Garric, Souriou e Hauser. Deram curso na Academia de Letras e fizeram conferências em vários estados em nome da UDF" (Arquivo UDF - PROEDES).
Em que pesem todos os problemas, além dos estrangeiros, os professores da UDF, até sua extinção, são um verdadeiro "quem é quem da ciência brasileira fora de São Paulo" (Schwartzman et al. 1984: 212). Entre outros, destacamos: Roberto Marinho de Azevedo, Hermes Lima, Lelio Gama, Josué de Castro, Gilberto Freyre, Lauro Travassos, Lúcio Costa, Heitor Villa-Lobos, Sergio Buarque de Holanda, Abgar Renault, Antenor Nascentes, Cândido Portinari, Heloisa Alberto Torres, Joaquim Costa Ribeiro, Lourenço Filho e Antonio Carneiro Leão.
Apesar de todos os reveses, mesmo após as demissões e prisões de professores, segundo Odette Teledo, "a universidade funcionou regularmente em 1936. Resistiu à nova crise do princípio do ano, dando mais uma prova de vitalidade, embora tenha decrescido sensivelmente o número de inscrições, como era natural" (Ib.). Mesmo assim, os professores que permaneceram, a partir desse ano, em especial na Escola de Ciências, tentaram levar adiante o projeto incial de formar um convívio dos mais agradáveis. De acordo com o professor Leinz, foi introduzido um sistema, que se usava na Alemanha, de realizar excursões com os alunos. Assim, para mostrar a geologia do Distrito Federal ele desenvolveu vários trabalhos práticos. Em 1937, realizou uma excursão de fomandos de História Natural a Minas Gerais. Em decorrência, Leinz fez uma conferência na Universidade sobre esse trabalho e, nessa oportunidade, um granduando de História Natural discursou ressaltando que a conferência não versava apenas sobre a pesquisa do professor, mas também sobre os resultados observados por ele e seus colegas. Tal excursão contribuiu, segundo o aluno, para reafirmar conhecimentos ministrados, ligar fatos até então isolados e estabelecer uma cadeia contínua, que deu ao Curso uma solidez incontestável (Santos, 1937).
Pesquisando a UDF, observa-se que a presença dos professores estrangeiros, mesmo por um período curto, esteve, em geral, voltada para a formação de pesquisadores naquela Universidade. Nessa direção, graças à presença de Deffontaines, surge, em 1936, o Centro de Estudos Geográficos, tendo como preocupação desenvolver trabalhos e pesquisas com a participação de professores, alunos e ex-alunos, em especial, sobre Geografia do Brasil. O Centro de Estudos Eugène Albertini é instituído em outubro de 1937, havendo registro da posse da Diretoria e do Conselho Deliberativo. Tinha por objetivo intensificar e aprofundar os debates sobre a civilização romana e propiciar a publicação de teses e trabalhos especializados dos sócios. Ainda em 1936, é criado o Centro de Estudos Sociológicos, tendo a sua frente dois professores brasileiros: Gilberto Freyre e Heloisa Alberto Torres. Como os demais Centros de Estudos da UDF, ele é organizado como um espaço de investigação e de discussão.
Além desses aspectos assinalados e da presença de professores estrangeiros, a UDF, quanto à organização acadêmica, apresentava algumas exigências que favoreciam a formação de pesquisadores, em comparação ao que existia, em termos de instituições de ensino superior. Entre outras palavras, registra-se uma tendência para que os cursos se realizassem com grande seletividade, o que significou, na Escola de Ciências, onde esse processo era mais acentuado, a redução de cerca de 50% do número de alunos da primeira para a terceira série (Penna Júnior, 1937). Tal fato pode também ser explicado lendo-se o depoimento do professor Herman Lent, no qual se assinala que, no caso da Escola de Ciências, embora esta se dissesse formadora de professores para o secundário, seus professores davam maior ênfase à pesquisa.
Leinz faz, ainda, referência à presença de dois assistentes em cada cadeira como fator importante para dar início à criação de uma escola. Segundo ele, isso contribuiu para que, na Geologia, se começasse logo a fazer pesquisa, uma sobre o método utilizado por essa ciência, outra sobre paleontologia. Mas, com a Lei de Desacumulação de Cargos, em 1937, os assistentes passaram a ser, em geral, recém-formados, o que resultou "em grande vantagem para eles e não grande vantagem para o ensino" (Leinz, 1977:31).
A propósito dessa lei, observa-se que ela representou, de imediato, prejuízo para a formação de pesquisadores na Universidade, uma vez que excelentes professores e pesquisadores ficaram fora da UDF, restringindo-se as possibilidades de experiências e de trabalho de campo, como acontecia com professores que eram também de Manguinhos e que podiam levar os alunos para lá, complementando a parte prática do trabalho da instituição.
4. O IMPEDIMENTO DA UDF
Uma das hipóteses com a qual trabalhamos no estudo sobre essa Universidade é a de se tramar, inclusive no nível do Ministério da Educação e Saúde Pública, o seu impedimento, a sua extinção, desde que ela foi criada. Anísio de certo percebia isso. Retornemos ao seu discurso:
Muitos julgavam que a Universidade poderia existir, no Brasil, não para libertar, mas para escravizar, não para fazer marchar, mas para deter a vida… Conhecemos, todos, a linguagem desse reacionarismo. Ela é matusalênica.
É que liberdade, meus senhores, é uma conquista que está sempre por fazer. Desejamo-la para nós, mas nem sempre a queremos para os outros. Há, na liberdade, qualquer coisa de indeterminado e de imprevisível, o que faz com que só possam amar os que realmente tiverem provado, até o fundo, a insignificância da vida humana, sem o acre sabor desse perigo. Por isso é que a Universidade é e deve ser a mansão da liberdade. Os homens que a servem e os que, aprendendo, se candidatam a servi-la, a alimentam. Essa bravura é que os torna invencíveis. Não morreram em vão os que morreram por esse ideal de um "pensamento livre como o ar"…
Todos os que desapareceram nessa luta, como todos os que nela se batem, constituem a grande comunhão universitária que celebramos nesta inauguração solene dos nossos cursos (AT 35.04.10, série t, doc.12. CPDOC/ FGV).
Ao ser instalada, em 1935, a Universidade do Distrito Federal surge como um divisor de águas em meio à agitação que marca o País naquele momento e às disputas pelo controle dos rumos da educação nacional. As oposições delineadas em nível oficial são mais decisivas. A oposição à UDF é mais profunda do que deixam prever as falas dos que estão no poder.
A literatura, sobretudo a oficial, fala de incorporação dos cursos da UDF pela Universidade do Brasil (UB). Na verdade, a UDF é extinta e seus cursos são transferidos para a UB, em 1939, por meio do Decreto 1.063, de 20 de janeiro.
Em nome da disciplina e da ordem, características do regime autoritário que vigia o Ministro Gustavo Capanema encaminha ao Presidente exposição de motivos que acompanha o decreto acima referido, justificando a destruição da UDF. O modelo padrão de organização universitária se impõe:
A Universidade do Distrito Federal, mantida pela Prefeitura, ministra cursos (filosofia, ciências, letras, economia, política, pedagogia, etc.) que são essenciais a qualquer universidade. A Unviersidade do Brasil, mantida pela União, não pode deixar de instituí-los, à semelhança das mais acatadas universidades do mundo, sob pena de permanecer indefinidamente como uma entidade anômala, sempre longe de ser uma honra para o país. Dessa maneira, é fora de dúvida que o caminho mais simples, mais certo e mais econômico é que os cursos da Universidade do Distrito Federal se incorporem à Universidade do Brasil (GC 36.09.18, doc. 13, série g. CPDOC/ FGV).
No ano anterior, o Ministro já havia encaminhado ao Diretor do DASP um documento bastante contundente, a respeito do Decreto Municipal nº 6.215/ 38, que reorganiza a UDF e que, segundo ele, era inconstitucional por faltar essa competência ao Prefeito. A respeito observa:
A existência da Universidade do Distrito Federal constitui uma situação de indisciplina e de desordem no seio da administração pública do país. O Ministério da Educação é, ou deve ser, o mantenedor da ordem e da disciplina no terreno da educação (…). É preciso, a bem da ordem, da disciplina, da economia e da eficiência, ou que desapareça a Universidade do Brasil, transferindo-se os seus encargos atuais para a Universidade do Distrito Federal, ou que esta desapareça, passando a Universidade do Brasil a se constituir o único aparelho Universitário da capital da República (GC 36.09.18, série g, doc. 3. CPDOC/ FGV).
Embora o País vivesse um de seus períodos de mais acentuada repressão, há protestos tanto da imprensa, como de intelectuais, como Mário de Andrade e Luiz Camillo de Oliveira Netto (GC 36.09.18, série g, doc.10. CPDOC/ FGV), que repudiam vivamente o desmantelamento dessa Universidade e lastimam ter sido apagado um dos centros mais vivos de saber e de cultura, "um lugar de ensino mais livre e mais moderno e mais pesquisador do Brasil" (GC/ Andrade, M. doc.7, série g. CPDOC/ FGV).
É nesse contexto que, visualizamos a UDF como uma utopia vetada. Uma utopia por ter representado, em matéria de instituição universitária, uma ruptura em relação ao modelo estabelecido. Como parte de um proframa integrado de educação pública para a capital do País, ela surge como um projeto de Universidade a ser contruído, em direção a uma nova realidade. Surge com a preocupação de ser um centro de estudos, de produção de saber e de cultura, marcada pela liberdade de expressão e de pensamento, o que lhe dá ao menos potencialmente caráter de uma instituição crítica, marcada por uma contra-ideologia.
É nesse contexto que, visualizamos a UDF como uma utopia vetada. Uma utopia por ter representado, em matéria de instituição universitária, uma ruptura em relação ao modelo estabelecido. Como parte de um programa integrado de educação pública para a capital do País, ela surge como um projeto de Universidade a ser construído, em direção a uma nova realidade. Surge com a preocupação de ser um centro de estudos, de produção de saber e de cultura, marcada pela liberdade de expressão e de pensamento, o que lhe dá ao menos potencialmente caráter de uma instituição crítica e inovadora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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