ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NEOLIBERAIS: UMA CONTRI-BUIÇÃO PARA A ANÁLISE DE SUAS REPERCUSSÕES NA EDUCAÇÃO E NA UNIVERSIDADE

DEISE MANCEBO (UERJ)

Muito se tem escrito acerca do neoliberalismo e não é minha intenção, neste trabalho, insistir em reiterações desnecessárias. Interessa-me reafirmar, no entanto, alguns aspectos sobre a natureza e o sentido que este projeto tem assumido na educação e, especificamente, na universidade.

O neoliberalismo representa uma alternativa política, econômica, social, jurídica e cultural para a crise econômica do mundo capitalista, iniciada a partir do esgotamento do regime de acumulação fordista, em finais dos anos 60. Representa, portanto, uma necessidade global de restabelecimento da hegemonia burguesa, trazendo implicações não só para a vida econômica, mas também para as diversas relações que se estabelecem entre os homens.

De um modo geral, o discurso liberal atribui à presença do estado e à esfera pública todos os malefícios sociais e econômicos que presenciamos. À livre iniciativa, ao contrário, são imputadas todas as virtudes que podem conduzir à regeneração e recuperação da democracia, da economia e da sociedade. Opera, portanto, um deslocamento, segundo o qual os existentes defeitos da vida política e social são separados de sua conexão com o presente modo de organização econômica (o capitalismo) e relacionados exclusivamente a uma suposta tendência burocratizante e estatizante.

Nesta linha, as principais medidas de reestruturação econômica apregoada implicam redução do gasto público, estancamento de investimentos, venda das empresas estatais, paraestatais ou de participação estatal e mecanismos de desregulamentação visando ao não-intervencionismo estatal no mundo dos negócios. No que diz respeito aos países que sofrem a crise da dívida externa, as providências são, de início, mais enérgicas, pois associadas à necessidade de estabilizar moedas corroídas por desequilíbrios financeiros prolongados. Em decorrência deste receituário mais geral, propõem a retração financeira do estado na prestação de serviços sociais (incluindo educação, saúde, pensões, aposentadorias, dentre outros) e a subseqüente privatização destes serviços. As privatizações são apregoadas, em nome dos benefícios advindos do livre mercado, no qual a eficiência da competição gera uma maior rapidez e presteza, por sua natureza menos burocrática. Em contraposição, as atividades do setor público ou estatal são apontadas como improdutivas, antieconômicas e como uma fonte de desperdício social.

No entanto, o discurso neoliberal em defesa do estado-mínimo não deve levar à confusão de supor que estes setores neguem a necessidade de um estado, que participe fortemente em um sentido social amplo. Neoliberais e conservadores combatem, na realidade, a forma histórica específica de intervenção estatal própria ao período fordista. Propõem, em seu lugar, um novo padrão, de caráter mais autoritário e antidemocrático, e ocultam este processo, apelando para a retórica de um governo e um estado ‘mínimos’. Conforme GENTILI(1995-b):

"...para destruir o modo de regulação política keynesiano e para desfazer-se do "bem-estar" que caracterizava aquele tipo de estado, os neoliberais precisam recriar um tipo de intervenção estatal mais violenta tanto no plano material como no simbólico. Este exercício de força ... assume uma nova fisionomia orientada a garantir uma - também nova - estabilidade política e ideológica. O estado neoliberal pós-fordista é um estado forte, assim como são fortes seus governos ‘mínimos’." ( p. 237)

O que o discurso anti-intervencionista, tão caro a neoconservadores e neoliberais, tenta ocultar é o fato do neoliberalismo precisar de um estado que projete, operacionalize e atue desencadeando múltiplas formas de intervenção.

Tanto o liberalismo como o neoliberalismo consideram as relações de mercado competitivas e otimizadoras, como um princípio capaz não apenas de limitar a intervenção governamental, mas também de racionalizar o próprio governo. No entanto, as formas neoliberais atuais diferem das formas anteriores de liberalismo pois não sustentam o mercado como uma realidade "quase-natural" já existente, assegurado e supervisionado à distância pelo estado. O mercado neoliberal só pode existir, sob certas condições jurídicas, políticas e institucionais, que devem ser ativamente implementadas e construídas.

"Enquanto para o liberalismo anterior a limitação do governo estava ligada à racionalidade da livre conduta dos próprios indivíduos governados, para o neoliberalismo, em contraste, o princípio racional para regular e limitar a atividade governamental deve ser determinado em referência a formas artificialmente arranjadas ou impostas da conduta livre, empresarial e competitiva de indivíduos econômico-racionais". (PETERS, 1995, p.219-20)

Deste modo, embora o neoliberalismo possa ser considerado como uma doutrina que apregoa o estado-mínimo, o estado tem-se tornado mais "forte" sob as políticas neoliberais de mercado.

No entanto, é preciso ter claro que está em jogo não apenas uma reestruturação neoliberal das esferas econômica, social e política, tal como apontam as críticas economicistas. A transformação cultural e ideológica é estratégica para a construção e garantia desta "nova" ordem global. Conforme diversos autores têm assinalado (SILVA, 1995-a; GENTILI, 1995-a), o discurso neoliberal produz, cria uma "realidade" ao mesmo tempo que tenta tornar impossível pensar e nominar outras "realidades".

Deste modo, as categorias que usamos para definir e organizar o mundo social, os sistemas que nos permitem ou impedem de pensar, ver e dizer certas coisas são reconstruídos. Esses sistemas, que na expressão de FOUCAULT são denominados de "epistemes", ou ainda, para utilizar a sugestão de POPKEWITZ (1991), "epistemologias sociais", são reordenados de modo que fora deles o mundo não tem mais sentido.

Torna-se impossível, por exemplo, pensar o econômico, o político e o social fora das categorias que justificam o arranjo social capitalista. Conteúdos culturais e políticos relacionados às modernas noções de cidadania, bem comum, democracia e educação pública , são substituídos por outros, produzidos no compasso da ética do mercado e do livre consumo, como a competitividade, a rentabilidade e a eficácia. A noção de sociedade de cidadãos com direitos, que negociam e lutam por seus interesses coletivos e pela democratização da vida econômica e social, é revertida, em favor da imagem de uma sociedade de consumidores em competição. Sujeitos sociais são idealizados dentro de um perfil cuja autonomia é escassa para a compreensão e intervenção críticas no mundo social e a solução de suas questões aflitivas é deslocada do espaço público, social e político para o âmbito da iniciativa individual e intimista.

O mesmo se passa no campo da educação. Um novo sentido do educativo é modelado, ao mesmo tempo que significados divergentes são ocultos e considerados disfuncionais em relação à nova lógica. Na expressão de SUAREZ (1995):

"...entre os questionamentos que desenvolve talvez o mais preciso e com maiores implicações sobre a estruturação de uma nova "racionalidade educacional" seja o que pretende apagar do imaginário social a idéia da educação pública como direito social e como conquista democrática, parcialmente obtida após anos de lutas sob o slogan da igualdade de oportunidades e historicamente vinculada com o processo social de construção da cidadania." (259-260)

Este ataque à educação pública se dá a partir de um conjunto de dispositivos privatizantes, através da aplicação de uma política de descentralização autoritária e, ao mesmo tempo, mediante a imposição material e simbólica de uma política de reforma cultural que postula a anulação da educação democrática, pública e de qualidade para as maiorias .

A educação é apontada, de forma unânime, como sendo prioritária, não só pela fé depositada por neoliberais quanto às necessidades de desenvolvimento científico e tecnológico, através dos quais se alcançaria uma vantagem competitiva nacional na economia global, mas também porque o neoliberalismo tem na educação um veículo fundamental de imposição de suas políticas culturais. No entanto, a educação que defendem é assepticamente despolitizada, anulada quanto ao seu caráter público e recebe uma roupagem mercadológica, condição para o triunfo de suas estratégias culturais e para a construção do consenso em torno delas.

Estratégias do discurso neoliberal na esfera educativa

Duas estratégias discursivas tem permitido aos setores neoliberais avançar e estender consideravelmente sua concepção de modernização conservadora na esfera educacional: (a) o discurso dominante que articula o universo educacional e o do trabalho e (b) o discurso da qualidade redimensionado para a análise das políticas educativas e dos processos pedagógicos. (GENTILI, 1995-b)

Educação e trabalho

Primeiramente, é necessário afirmar a educação e trabalho enquanto esferas da vida que devem encontrar pontos de interseção e cooperação. Não é minha intenção por em dúvida esta constatação. Contudo, muito diferente é a pretensão política que orienta neoliberais e neoconservadores, qual seja, subordinar a educação ao mercado, convertendo-a em mais um instrumento da complexa maquinaria de dualização e polarização social que caracteriza o projeto neoconservador.

Para os neoliberais, é central, na reestruturação da esfera educativa, a tentativa de atrelar a educação institucionalizada aos objetivos estreitos de preparação para o local de trabalho. Trata-se de fazer com que as escolas e universidades preparem melhor seus alunos para a competitividade do mercado nacional e internacional. Nesta perspectiva, a educação é entendida enquanto uma propriedade que se adquire no mercado dos bens educacionais e os detentores desta propriedade estarão mais ou menos aquinhoados para competir no mercado dos postos de trabalho. Enquanto propriedade (que se compra e se vende), a categoria educação é esvaziada no seu sentido de um direito social e quando aplicada ao conjunto das maiorias excluídas, não é outra coisa senão a educação para o desemprego e a marginalidade.

É parte constitutiva deste tipo de informação, utilizar o espaço educativo institucionalizado como veículo de transmissão das idéias que ressaltam as excelências do livre mercado e da livre iniciativa. A intervenção no espaço escolar é, portanto, dupla: alteram-se os conteúdos educativos visando, a um só tempo, ao "treinamento" estreito para o local de trabalho e à preparação dos estudantes para aceitar os postulados do credo liberal.

Os neoliberais criticam a rede educacional existente como anacrônica e inadequada, em relação às exigências do trabalho nos setores da indústria, do comércio e dos serviços. O problema desta crítica está no referencial que é tomado para avaliar o estado da educação atual e, em decorrência, nas soluções que são propostas. Conforme SILVA(1995a):

"Nossa descrição das misérias do sistema educacional pode coincidir com a descrição neoliberal, mas ter um ponto de referência diferente faz uma enorme diferença. Na visão neoliberal, o ponto de referência para condenar a escola atual, não são as necessidades das pessoas e dos grupos envolvidos, sobretudo aqueles que mais sofrem com as desigualdades existentes, mas as necessidades de competitividade e lucro das empresas. Como conseqüência, as soluções propostas pela visão empresarial tendem a amarrar a reestruturação do sistema educacional às estreitas necessidades de treinamento da indústria e do comércio (...) Adotar uma perspectiva diferente não significa negar a importância da preparação para o trabalho, mas colocar essa preparação num quadro que leve em consideração principalmente as necessidades e interesses das pessoas e grupos envolvidos - sobretudo aqueles já prejudicados pelos presentes esquemas - e não as especificações e exigências do capital." (p. 24-25)

Nas instituições de ensino superior, a implementação da "universidade de serviços", "de resultados" ou "modernizada" conduzirá a idéia e a prática da privatização do público às suas últimas conseqüências, afetando não só o ensino, mas também a produção de conhecimentos. As pesquisas, lançadas à busca de seu próprio financiamento no mercado, não serão privatizadas apenas pelo tipo de recurso que vierem a receber, mas porque serão reduzidas a serviços encomendados cujos critérios, objetivos, padrões, prazos e usos não serão definidos pelos próprios pesquisadores, mas pelos financiadores. De acordo com CHAUÍ (1989):

"A aceitação dos financiamentos privados produz os seguintes efeitos principais: a- perda da autonomia ou liberdade universitárias para definir prioridades, conteúdos, formas, prazos e utilização das pesquisas que se tornam inteiramente heterônomas; b - aceitação de que o estado seja desincumbido da responsabilidade pela pesquisa nas instituições públicas; c - aceitação dos financiamentos privados como complementação salarial e fornecimento de infra-estrutura para os trabalhos de investigação, privatizando a universidade pública; d - desprestígio crescente das humanidades, uma vez que sua produção não pode ser imediatamente inserida nas forças produtivas, como os resultados das ciências; e - aceitação da condição terceiro-mundista para a pesquisa científica, uma vez que os verdadeiros financiamentos para pesquisas de longo prazo e a fundo perdido são feitos no Primeiro Mundo." (p. 86-87)

Além disto, essa orientação obstaculiza o procedimento reflexivo, que a universidade deve realizar, quanto às relações estabelecidas entre a tecnologia e a sociedade. Esta é uma importante faceta do trabalho universitário: a reflexão abrangente e crítica sobre a sociedade, a tecnologia e a ciência, e para que esta apreciação valorativa das práticas sociais possa ser exercida é necessário "o relativo distanciamento de tais práticas ou pelo menos a ausência de compromisso imediato com os resultados tecnológicos." (SILVA, 1989) Não havendo este "distanciamento" mínimo, a mediação ética ou axiológica que transcenda os estritos parâmetros de produção e consumo ficam impossibilitados e a própria universidade empobrecida.

A qualidade neoliberal na educação

A outra estratégia discursiva, que tem possibilitado aos setores neoliberais um avanço de suas propostas, na esfera educativa, é a transposição do conceito de qualidade, tal qual tem sido aplicado no campo do trabalho.

A preocupação com a qualidade, nos campos dos negócios, tem longa data. O que há de novo no presente entusiasmo sobre o assunto é o fato da qualidade ter-se transformado - sobretudo a partir da crise do regime de acumulação fordista - em uma importante estratégia competitiva dentro de um mercado cada vez mais diversificado e diferenciado. A qualidade, portanto, no campo do trabalho, está diretamente interligada com a possibilidade de aumento da produtividade e lucro.

Na educação, primeiramente, é preciso afirmar que a temática da qualidade tal como tem sido posta pelo pensamento neoliberal alija do campo de discussão o tema da igualdade. Na análise de GENTILI (1995-a):

"... na América Latina o discurso da qualidade referente ao campo educacional começou a desenvolver-se em fins da década de 80 como contraface ao discurso da democratização...esta operação foi possível - em parte - devido ao fato de os discursos hegemônicos sobre a qualidade terem assumido o conteúdo que este conceito possui no campo produtivo, imprimindo aos debates e às propostas políticas do setor um claro sentido mercantil de conseqüências dualizadoras e antidemocráticas." (p.115)

Para os neoconservadores e neoliberais, a qualidade, como a própria educação, é um atributo potencialmente adquirível no mercado dos bens educacionais. É uma propriedade e, portanto, pressupõe a existência dos que a têm (ou a compram) e os que não a alcançam. Deste modo, o conceito de qualidade marca uma clivagem interna no universo dos "consumidores" de educação, além de legitimar a exclusão dos que não a usufruem. Esta problemática, própria às sociedades dualizadas, ao invés de se apresentar como um sério problema de exclusão social a ser modificado, tem-se configurado numa situação naturalizada e considerada normal nas modernas sociedades competitivas. Na perspectiva conservadora, inclusive, é bom que assim seja, pois os critérios diferenciais de concessão e as formas distintas de absorção do bem educação estimulam a competição, mola mestra na regulação de qualquer mercado.

Na esfera educativa, a idéia da "excelência" mobiliza a competitividade entre as instituições, entre os alunos e os docentes. Não raramente, ela vêm seguida de uma ênfase exacerbada na medição, nos critérios padronizados para averiguação dos êxitos cognitivos dos alunos e da produção docente, sugerindo que o simples ordenamento hierárquico diagnostica e melhora por si mesmo a situação educacional. Além disto, a padronização permite localizar, na massa dos sujeitos individualizados (professores ou alunos), aqueles que são mais dotados, com o objetivo de colocar à sua disposição os melhores recursos.

Nas universidades, este discurso está bastante presente já há algum tempo. Com o pretexto de que os conhecimentos se tornaram banalizados, diante da expansão da rede de ensino superior, veicula-se a idéia de desvincular a universidade para o ensino, dos centros e institutos de pesquisa. Feita a avaliação e estabelecida a clivagem, a distribuição de verbas em função do "ranking" alcançado faria "o resto do serviço", aprofundando ainda mais a situação de deterioração da maioria das instituições de ensino superior públicas do país.

O conceito de qualidade tomado do campo empresarial também permeia as análises modernizantes da gestão do espaço universitário. Deste modo, a situação caótica que se enfrenta cotidianamente nas instituições de ensino superior são apontadas como advindo de uma má gestão, desperdício de recursos, falta de produtividade e esforço de docentes e administradores, ou ainda, como decorrência de métodos antigos e ineficientes, de currículos inadequados. Para problemas técnicos, as soluções devem ser da mesma ordem e é nesse raciocínio que se insere o discurso sobre a qualidade e sobre a gerência da qualidade total (GQT). A crise da escola, nesta acepção, poderia ser combatida eficazmente a partir da incorporação de critérios empresariais de organização e gestão. Questionamentos e críticas de ordem política são tomados como elementos irracionais, que perturbam as opções técnicas corretas a serem adotadas. O conflito passa a ser visto como um fator que entorpece e obscurece a "livre" ação dos "atores" educacionais, no intuito de implementarem a qualidade nas instituições educativas. Transfere-se, exclusivamente, para dentro de cada instituição qualquer decisão e ato de reforma e com suas próprias pernas.

Conforme SILVA (1995-a):

"Apesar de toda a retórica da GQT (gerência da qualidade total)em favor da participação dos "clientes"(a escolha do léxico nunca é inocente) e da definição dos objetivos e métodos educacionais a partir das necessidades e desejos dos "consumidores", dando uma ilusão de democracia, escolha e participação, a verdade é que a estratégia da qualidade total enquadra o processo escolar e educacional numa estrutura de pensamento e concepção que impede que se pense a educação de outra forma. Os "clientes" estão livres para determinar o que querem, mas aquilo que querem já está determinado antecipadamente quando todo o quadro mental e conceitual está previamente definido em termos empresariais e industriais. Sob a aparência de escolha e participação, a GQT impõe uma visão de educação e gerência educacional que fecha a possibilidade de se pensar de outra forma. A verdadeira escolha consistiria em poder rejeitar a própria idéía de qualidade total, o que equivaleria a rejeitar toda a noção neoliberal de educação". (p. 21)

 

Por fim, cabe elucidar aspectos fundamentais, que a qualidade tomada do campo empresarial oculta, ao ser transposta para a educação. Primeiro, quando neoliberais sustentam critérios universais de aferição e promoção da qualidade, obscurecem a existência de critérios variados, construídos historicamente, a partir de motivações políticas distintas. Ao apresentarem a qualidade como um dispositivo que necessariamente deve produzir diferenciação educacional (e social), anulam a possibilidade desta vir articulada à democratização do sistema educacional. Por fim, quando a qualidade é travestida em mercadoria (comprada pelos mais "capazes"), esvazia-se o conceito da qualidade na educação referida a um direito da população.

 

A produção do novo indivíduo

Para a eficácia dos dispositivos neoliberais e neoconservadores é preciso contar-se com um homem novo. É preciso que os indivíduos introjetem o valor mercantil e as relações mercantis como padrão dominante de interpretação dos mundos possíveis, reconhecendo no mercado o âmbito em que, "naturalmente", podem - e devem - desenvolver-se como pessoas humanas.

No liberalismo clássico, pelo menos em uma de suas formas, havia um apelo à razão sob a forma de um individualismo que privilegiava o sujeito racional, cognoscente, como a fonte de todo conhecimento, significação, autoridade moral e ação. A variante particular dessa metanarrativa, própria ao neoliberalismo e ao neoconservadorismo, traduz-se no racionalismo econômico, cuja suposição básica é a de que os homens se comportam e agem como indivíduos auto-interessados.

Conforme PETERS (1995)apresenta esta discussão, o neoliberalismo:

"...é uma filosofia do individualismo que representa uma renovação do principal artigo de fé do liberalismo econômico clássico. Ele afirma que todo comportamento humano é dominado pelo auto-interesse. Sua principal inovação, em sua versão contemporânea, consiste em elevar este princípio ao status de um paradigma para compreender a própria política e, na verdade, para compreender todo comportamento." (p.212)

 

Trata-se de uma espécie de individualismo que tem por objetivo moldar a vida das pessoas como a empresa de si mesmo, na expressão de GORDON (1991, p. 44) "o empresário de si mesmo". Baseia-se, ainda, no moderno postulado de comportamentos, denominado Homo economicus, uma reedição do princípio da economia clássica liberal, segundo o qual "as pessoas devem ser tratadas como maximadores racionais da utilidade para reforçar seus próprios interesses (definidos em termos de posições mensuráveis de riqueza) na política, assim como em outros aspectos da conduta". (PETERS, 1995, p. 221)

Esta nova economia das subjetividades implica a reestruturação de ações, comportamentos, afetos e sentimentos. Atravessa e envolve os sujeitos e as consciências de uma forma muito mais sutil, através da valorização da noção de intimidade e da preocupação com o "eu" enquanto algo precioso, um tesouro a ser conservado, recolhido e ampliado através da competição. A outra face desta dinâmica é uma profunda indiferença e desinteresse do homem pelo mundo público e pela construção coletiva. Na expressão de RAGO (1993), trata-se da emergência das "políticas da indiferença", tema de preocupação atual de diversos cientistas sociais.

Neste sentido, a produção da nova subjetividade, do homem movido por seus estritos interesses e indiferente à esfera pública, é uma estratégia de controle e regulamentação da vida das populações. Esta regulação e "governo dos indivíduos", central para o projeto neoliberal em curso, não está necessariamente estruturada a partir de qualquer instituição específica. Conforme SILVA (1995-b):

"o que caracteriza a sociedade contemporânea é precisamente o caráter difuso desses mecanismos de regulação e controle, disperso que estão em uma ampla série de intituições e dispositivos da vida cotidiana."(p.252)

A educação e a universidade são, com certeza, um desses espaços privilegiados de construção e expressão de indivíduos economicamente orientados, voltados estritamente para suas práticas acadêmicas e competindo entre si por melhores colocações no mercado intelectual.

A compreensão desta "micropolítica" não nos isenta de questionamentos. Ao contrário, muitas de nossas práticas, desenvolvidas "dia-a-dia" na universidade, transformam-se em objeto de desconfortáveis críticas. No entanto, o exercício da auto-reflexividade não deve ser traduzido em niilismo, descompromisso ou abandono da política. Neste momento crítico, em que neoliberais avançam com êxito no sentido de impor seus argumentos como verdades inquestionáveis, impõe-se trazer às nossas memórias, os embates que travamos e através dos quais pudemos ampliar o conceito e as práticas da educação e da universidade públicas. Trata-se de desconstruir o discurso neoliberal apresentado como único e natural, contrapondo alternativas materiais e culturais de organização da sociedade e, no nosso caso, da educação universitária. Este desafio, no entanto, depende da possibilidade de nos deslocarmos do estrito espaço individualista a que pretendem nos restringir, de ensaiarmos novas formas de subjetividade e de construirmos uma nova hegemonia que dê sustentação a um projeto de sociedade e de educação igualitárias e democráticas.

 

 

Referências Bibliográficas

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GORDON, C. Government rationality. In: BURCHELL, G. et alii. (org.) The Foucault effect: studies in governmentality. Londres, Harverster, 1991.

PETER, M. Governamentalidade neoliberal e educação. In: SILVA, T.T. (org.) O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 2.ed. Petrópolis, Vozes, 1995.

POPKEWITZ, T.S. A political sociology of educational reform. New York, Teachers College Press, 1991.

RAGO, M. Políticas da (in)diferença: individualismo e esfera pública na sociedade contemporânea. Anuário do Laboratório de Subjetividade e Política, UFF, 2 (2): 11-29, 1993.

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SUAREZ, D. O princípio educativo da nova direita. In: GENTILI, P.A.A.(org.) Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis, Vozes, 1995.

 

 

 

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