ESCOLA DE ENGENHARIA DE PORTO ALEGRE (1896-1934) HEGEMONIA POLÍTICA E CONSTRUÇÃO DA UNIVERSIDADE*
Marília Costa Morosini**
Maria Estela Dal Pai Franco***
1 - INTRODUÇÃO
A Escola de Engenharia de Porto Alegre (E.E.) foi o pilar do ensino superior no Rio Grande do Sul (RS) e gênese da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Congregava características incomuns para o ensino superior brasileiro à época dominado pelas escolas de formação de bacharéis, inspiradas no modelo francês-napoleônico de faculdades voltadas ao eruditismo e a profissionalização. A E.E., inicialmente orientada por modelo universitário alemão e, após, americano, caracterizou-se pela interligação entre os diferentes graus de ensino, pela descentralização de suas atividades no Estado e pela produção e divulgação do conhecimento produzido.
O (PRR) Partido Republicano Riograndense dominava o cenário político Riograndense e constituía-se "na forma superior de organização" (MACCIOCHI, 1977:64) da concepção positivista. Sob tal perspectiva, a ciência e o governo dos sábios, cuja ordem levaria ao progresso do Estado, desempenhava um papel preponderante para construção do capitalismo. É então criada a E.E. que representa a manutenção da hegemonia do grupo no poder, a qual não se restringe à dominação pela coerção, mas estende-se à formação do consenso, para a qual se faz imprescindível a função educativa (GRUPPI, 1980).
Este trabalho tem como objetivo resgatar a trajetória da E.E. em seus primórdios e em seu desenvolvimento para Universidade Técnica, qualificativo dado à E.E. nos Estatutos de 1922, abarcando o período de 1896-1934. Objetiva-se revelar as ligações entre a E.E. e o Estado e sua face universitária.
2 - ESCOLA DE ENGENHARIA E SUA ÉPOCA
Durante a República Velha (1890-1930) a realidade brasileira e, mais precisamente a riograndense, reflete a busca de inserção do RS no processo global de internacionalização do capitalismo, pela via monopolista. Tal postura exigia a adoção de uma moral ética - a do valor trabalho - e um estado "científico" forte - ditadura científica -, centralizador e com hegemonia dos setores mais avançados do capital. Um Estado que além de "celeiro do País" (PESAVENTO, apud DACANAL, 1989:194), forçasse a modernização. Tal Estado, na virada do século (1890-1930) se concretizou apoiando-se no Partido Republicano Riograndense (PRR), sob novo grupo de atores políticos. O PRR aproximou-se do
"moderno Príncipe (Partido Político) que deve e não pode deixar de ser o propagandista e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa criar o terreno para o desenvolvimento ulterior da vontade coletiva - deve estar ligado a um programa de reforma econômica;" (GRAMSCI, l984:13).
Assim, no RS, a concepção positivista, Comteana, não se restringiu ao caráter de religião da humanidade mas corporificou-se no PRR. A ciência é a investigação do real, do precisamente determinado e do útil e seu desenvolvimento marcava a passagem do poder espiritual para mãos de sábios e cientistas e do poder material, para a de industriais.
A E.E. pode ser considerada a obra mais grandiosa do espírito positivista no RS, com íntima e estreita relação entre o Estado-RS e a escola pela: identidade de princípios, reconhecimento da importância do Estado e concessão de auxílios financeiros e desempenho de funções políticas concomitante às acadêmicas na E.E..
No que tange à identidade de princípios entre a E.E. e o Estado do RS, a concepção positivista de sociedade está presente em diversos estatutos que orientam a escola.
Em relação ao reconhecimento da importância do Estado para a E.E. a forma predominante é a dos elogios dirigidos a figura dos Presidentes do Estado: Dr. Carlos Barbosa (Ata nº 100 de 31-11-1912) e Dr. Borges de Medeiros (Ata nº 139 de 07-04-1917). É comum que os Institutos da E.E. homenageassem os políticos do Estado, através de sua nominação. Ao lado dos elogios aos membros do governo, é destacada a concordância na concepção de técnica , bem como a relação de dependência da E.E. ao Estado do RS, apontada no relatório de 1901 do Diretor.
A estreita relação se manifesta também pela concessão de auxílios financeiros do Estado do RS. A E.E. dispunha de auxílios provenientes das Intendências, assim como de particulares e de empresas. Entretanto, através dos relatórios da Escola, sabe-se que pela Lei nº 72 de 28 de novembro de 1908 é concedida ao Instituto Téchnico Profissional um auxílio pelo prazo de dez anos a contar de primeiro de janeiro de 1911, proveniente da arrecadação da taxa profissional de 2% (lei orçamentária de apoio ao ensino técnico) posterirmente, como auxílio ao Instituto de Agronomia e Veterinária.
A estreita relação E.E. - Estado RS projeta-se, também, no desempenho de funções políticas, no executivo e/ou no legislativo por professores, concomitante às funções acadêmicas e/ou administrativas na escola.(Quadro 1).
As características anteriormente apontadas da Escola de Engenharia de Porto Alegre levam-nos a concordar com GRAMSCI (1985:136), pois "Não é aquisição de capacidades diretivas, não é a tendência de formar homens superiores que dá a marca social de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nesses grupos uma determinada função tradicional diretiva ou instrumental".
A íntima relação entre Estado e E.E. que existiu no RS não é verificada na esfera da União. Naquele momento o RS é um Estado poderoso e tem voz diante da Nação. GENRO (apud DACANAL,l980:105) afirma que as relações do RS com o poder central não eram estáveis, com diferentes blocos de poder diferenciados no comando.
No plano das ingerências financeiras as concessões do Estado-União à Escola são oscilantes, e podem ser divididas em dois momentos. Até 1910, há reclamos por parte da Escola, do não envio de verbas da Federação. Após esta data são reportados alguns elogios aos representantes gaúchos na União, mas poucos à ajuda financeira. A partir de 1911, começa a surgir o registro do envio de verbas federais (Ata nº 96, de 31.1.1911).
QUADRO 1 - CONCOMITÂNCIA DE FUNÇÕES NA E.E. E EM
INSTÂNCIAS GOVERNAMENTAIS, 1896 - 1922
NOME |
ESTADO (Função) |
ESCOLA DE ENGENHARIA (Função) |
João José Pereira Parobé |
· Constituinte da Província do RS (1891) · Secretário de Estado - Obras Públicas (1897) · Deputado Estadual - PRR (1909-1911) |
· Diretor (1897-1915) |
João Simplício Alves de Carvalho
|
· Deputado Estadual (1901) · Deputado Federal (1908-1912) · Secretário da Fazenda (Gover-no Getúlio Vargas - 1930) |
· Fundador da Escola de Engenharia · Professor - Conselho Escolar (1898-1915) · Diretor Eleito (1915-1922) |
Gen. Manoel Theophilo Barreto Vianna |
· Constituinte (1891) · Deputado Estadual (1897-1928) |
· Professor - Conselho Escolar (1898-1915) · Diretor Interino (1915-1922) |
João V. de Abreu |
· Deputado Estadual (1905-1909) |
· Fundador da Escola (1896) · Professor - Conselho Escolar (1896-1910) |
Luiz Englert |
· Constituinte (1891) · Deputado Estadual (1899-1912) |
· Professor - Conselho Escolar (1909-1920) · Diretor do Instituto de Engenharia |
Cândido José de Godoy |
. Secretário da Fazenda Gov. Fed. (1909) |
. Professor - Conselho Escolar |
Juvenal Octaviano Müller |
. Vice-Presidente do Estado (1907-1908) |
. Professor - Conselho Escolar |
FONTES:
ESCOLA DE ENGENHARIA DE PORTO ALEGRE. Actas do Conselho Escolar. Porto Alegre: 1908-1922. Manuscrito.
______ . Estatutos. Porto Alegre:1896, 1898, 1912, 1917.
RIO GRANDE DO SUL. Assembléia Legislativa. "Annaes" - 1935. Porto Alegre: Imprensa Official, 1936.
No plano das ingerências acadêmicas embora o Instituto Júlio de Castilhos seguisse o programa do Ginásio Nacional havendo, inclusive, a presença de fiscal federal em suas dependências, Parobé, Diretor da Escola, externa seu descontentamento à dependência federal quando afirma buscar "livrar-se do fatal código de ensino e da praga dos institutos equiparados" (E.E., Relatório do Diretor, 1910:III).
Ao analisar a gênese da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, FRANCO; MOROSINI (l993) também destacaram a autonomia acadêmico-administrativa consentida da E.E. perante a União, a partir da comparação entre o determinado pelas reformas federais (Decreto nº 8659 de 05.4.1911 que institui a liberdade de ensino às faculdades e Decreto nº 11530 de 18.3.1915 que faz retornar a fiscalização federal) e o concretizado na E.E.
3. ESCOLA DE ENGENHARIA DE PORTO ALEGRE
No período de 1896 até 1922, a E.E. atravessa diversas fases (UFRGS, 1971). A primeira delas, de 1896 a 1906, é definida como fase primordial e de consolidação, implantando-se os cursos de agrimensura, de engenheiro de estradas e de engenharia civil; a segunda, de 1906 à 1911, corresponde à fase pioneira da expansão, pois nesse primeiro ano é criado o Instituto Técnico Profissional, posteriormente batizado de Parobé e mais 3 Institutos: Astronômico e Meteorológico, Eletrotécnico e Agronômico e Veterinário; de 1911 a 1917, segue-se uma nova fase de consolidação; a quarta fase, de 1917 a 1921, é a fase de extensão do ensino técnico profissional elementar e médio, das áreas industrial e agrícola, fundando neste período, em pontos estratégicos no interior do Estado, 3 escolas industriais elementares, dotadas de patronatos; 4 estações de Agricultura e Criação, com os respectivos patronatos; 3 estações de Zootecnia, dispondo cada uma de patronato e 39 estações de Meteorologia. Foram criados, ainda, em 1920 o Departamento de Saúde, o Curso de Química Industrial, o Departamento Comercial, Industrial e Financeiro (CIF) e o Ensino Ambulante. Cabe destacar os seguintes aspectos: 1) estratificação do ensino em vários níveis, visando a infra-estrutura que serviria de base à comunicação do conhecimento tecnológico ; 2) interiorização do ensino, pela criação de instituições de ensino teórico-prático, em pontos estratégicos e em cidades do interior do Estado (Caxias do Sul, Rio Grande, Santa Maria, Bento Gonçalves, Cachoeira do Sul, Santa Rosa, Bagé, Alegrete, Júlio de Castilhos); 3)Seleção e promoção de talentos oriundos da camada social de poucos recursos econômicos, através da criação de seções de patronato e da possibilidade de ascensão vertical no sistema de ensino.
Na Escola de Engenharia:
"Construíram um sistema de ensino superior iluminado por parâmetros universais pois para os professores da Escola a concepção de curso era o do ensino vigente no mundo, porque eles estudaram nas universidades alemãs e americanas mandaram para lá nossos técnicos para estudar o ensino nesses países.. "
(SOARES, 1986:22).Esta concepção de ensino-pesquisa era acompanhada de divulgação do conhecimento produzido na revista EGATEA (existente até 1934 e reeditada a partir de 1992). Constituía-se em uma coletânea bimestral de estudos e pesquisas e destinava-se a ser,
" uma publicação de interesse geral para o Rio Grande do Sul, cujo progresso pretende ser collaboradora e commentadora. Asim sendo, os assumptos que ocuparão proeminente logar são os que a esse progresso se relacionam....São absolutamente excluidos todos os assumptos de caracter pessoal e de caracter didatico puramente."
(E.E., Relatório do Diretor, 1914: 18-20).É importante ainda ressaltar que, nesse mesmo relatório, são descritas pesquisas experimentais, a maioria realizada nos laboratórios do Instituto de Agronomia e na Estação Experimental tal qual uma análise comparativa da entrada e saída d’água do Rio Guaiba, bem como testes zootécnicos buscando a correlação entre alimentação e estado fisico de animais.
A fim de atender as funções descritas a E.E. executa, a partir de 1911, uma política de atração de professores estrangeiros para trabalharem na Escola. Nesse ano, é registrada a presença de 13 professores especialistas estrangeiros no Instituto de Agronomia e Veterinária e mais sete em outros institutos. A grande maioria destes eram europeus. Em 1913, são registrados 30 professores estrangeiros presentes na Escola. Ao iniciar a 1ª Guerra Mundial este intercâmbio é interronpido (E.E., Relatório do Diretor, 1918: VII,VIII).
Aspectos tais quais os mencionados mostram que a E.E., desde os seus primórdios, assumiu a orientação de atender diversas áreas de conhecimento ligadas ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e se aproximou da concepção de universidade moderna pela sua estruturação, formato e funções . Os Estatutos de 1922 e relatórios da época qualificam-na como Universidade Técnica:
"A Escola de Engenharia de Porto Alegre é uma Universidade Técnica. Seu fim é propagar no Rio Grande do Sul e no Brasil a mais moderna e eficiente educação técnica, profissional e industrial, baseada em uma real educação primária e preparatória. O seu programa conduz o indivíduo do mais modesto ao mais elevado grau de ensino técnico"
(E.E. Estatutos, 1922, Art. 1º).O uso do termo "universidade" no discurso oficial sucede uma estruturação concreta que se aproxima da idéia de universidade, o que denota a cultura antecipativa da instituição. Em que pese o fato de a U.T. ter sido formalmente instituída nos Estatutos da E.E. de Porto Alegre, de 1922, a denominação prevalente continuou a ser a de Escola, até 1931, quando foi autorizada a mudança de nome pelo Decreto do Governo Provisório da República nº 20272, de 3.8.1931, sendo oficializada pelo Decreto nº 4929, de 20.1.1932 (Ata nº 147, da Sessão do Conselho de Administração, de 26/3/32).
"... caso venha a ser uma realidade a mudança do grande nome da Escola de Engenharia de Porto Alegre, para Universidade Técnica do Rio Grande do Sul, se faça uma reforma de verdade, assentada em moldes liberais, ponderada, ... e assegurando antes de tudo, a liberdade aos institutos componentes, para poderem os seus dirigentes e professores trabalharem sem receio".
(E.E., Atas da Congregação do Instituto de Engenharia 1929-1934:12-133).Em resumo, pode-se configurar a seguinte trajetória da E.E. de Porto Alegre em sua transição para Universidade Técnica:
.1922 - Pelos Estatutos da E.E. de 1922, Art. 1, a E.E. de Porto Alegre é qualificada como Universidade Técnica;
.1922 -Relatório do Departamento Central da E.E. reconhece a transição para U.T.;
.1922 - Estatutos 1922 se aproximam da idéia de Universidade;
.1931 - Decreto Federal 19851, de 11/4/31, que dispõe sobre o Ensino Superior no Brasil e abre possibilidade para criação de Universidades, dando preferência ao Sistema Universitário;
.1931 -Decreto Federal 20272, de 3/8/31, autoriza a mudança de nome de Escola de Engenharia de Porto Alegre para Universidade Técnica do RS;
.1932 - Decreto Estadual 4929, de 20/1/32, oficializa a
Universidade Técnica do RS;
.1932 -Decreto Federal 21080, de 24/2/32, transfere para a Universidade Técnica as cotas de custeio conferidas à Escola de Engenharia de Porto Alegre.
Na visão de FRANCO; MOROSINI (1993), o interregno de quase uma década entre a inserção do nome da U.T. nos Estatutos da Escola de Engenharia de Porto Alegre, de 1922 até as discussões de 1931, que culminaram na aprovação da mudança de nome pelo Estado-União, pode ser entendido sob diferentes prismas.
O primeiro deles advém das raízes e trajetória da E.E. cujos fundadores, no transcurso de 30 anos, construíram uma instituição forte, marcante pelos seus feitos, pela sua função de pesquisa, pela formação de seus docentes e pelas edificações que refletiam o requinte da arquitetura da época. A E.E. refletiu uma história introjetada na vida da instituição, mas que a transcendia, pois estava inserida na vida da comunidade riograndense.
O segundo ponto a destacar é o de que o nome U. T. tal qual consta dos Estatutos de 1922, é uma tentativa de formalizar o que já estava sendo construído paulatinamente, ao longo da trajetória da E.E..
O terceiro ponto a registrar é a marcante influência exógena sobre a E.E.. A influência francesa, atuante na sociedade brasileira na década de 20, repercutiu na estruturação e na ação da E.E. Mas não se pode omitir a influência alemã, manifestada, inclusive, no termo "Universidade Técnica".
O quarto ponto, e o mais incisivo, diz respeito à autonomia e poder conferidos à E.E., na medida em que era braço hegemônico do Estado-RS. Tal poder legitima-lhe a introdução do nome U.T. nos estatutos centralizadores, mas, ao mesmo tempo, a sua dependência ao Estado-União, faz com que continue a denominar-se como Escola até o reconhecimento formal, em 1931.
4 - FACE UNIVERSITÁRIA DA ESCOLA DE ENGENHARIA
A E.E. apresenta pontos de aproximação com a concepção de universidade moderna nas suas funções finalísticas. A E.E., também se aproxima da idéia de universidade moderna, ao se preocupar com a qualificação de seus docentes e buscar articulações internacionais.
No que se refere à estrutura político-administrativa, a E.E. apresenta como pontos tangenciais com a concepção de universidade moderna e/ou departamentos, a estrutura administrativo-decisória, a relativa autonomia das unidades universitárias quanto à receita e à despesa e quanto ao seu funcionamento, a não duplicação de meios e, finalmente, o oferecimento semestral de alguns cursos.
No que diz respeito à estrutura administrativo-decisória, de1922, a E.E. foi organizada com um Conselho Universitário, uma Presidência, um Conselho de Administração, um Conselho de Instrução ou Técnico, Departamentos e Institutos. Três departamentos dinamizavam a Escola administrativamente: Departamento Comercial, Industrial e Financeiro, Departamento Central e Departamento de Saúde. Através de seus institutos a E.E. possibilitava o desenvolvimento de funções de ensino, pesquisa e extensão.
Em relação ao segundo aspecto que denota aproximação com a concepção de departamento, hoje vigente, observa-se que as "secções" de ensino manifestavam relativa autonomia, atuando como verdadeiras faculdades, uma vez que possuíam para cada "secção" um corpo docente, elaboravam seus critérios de seleção para docentes e discentes. Cada "secção" organizava sua receita e despesa para entrar no orçamento da Universidade e era administrada por um Diretor nomeado pelo Presidente da Escola (E.E., Estatutos de 1929, Art. 96).
O terceiro aspecto, a não duplicação de meios, guarda aproximação com o princípio que hoje rege a concepção de departamento sendo sinalizado na assertiva de que,
"Os professores do Instituto são nomeados pelo presidente da Escola, mediante concurso, quando não forem técnicos ou chefes de serviço em exercício na Escola, ou professores de outros institutos"
(E.E., Regulamento do Instituto Montaury, 1923, Art.88).Tal aspecto aliado ao que se observa em relatórios dos Institutos ao Conselho Universitário, indicam a presença do princípio da não duplicação de meios. Um mesmo docente seria responsável por dada área do conhecimento socializada entre os vários institutos que a incluiam no seu currículo.
O quarto ponto tangencial com a universidade moderna é o funcionamento semestral de alguns cursos, se bem que distanciados da concepção de crédito, hoje amplamente difundida.
Ao discutir os pontos tangenciais com a universidade moderna, uma prática vigente na época merece uma menção especial. É a prática de, anualmente, todos os diretores de departamentos enviarem um relatório minucioso ao Presidente da Escola. Também procediam, assim, Institutos e Estabelecimentos. Tais trabalhos eram congregados num relatório do Presidente, apresentado ao Conselho Universitário.
O qualificativo de "Universidade Técnica" para a E.E. poderia ser identificado com a matriz profissional de organização universitária que expressa a função do ensino para formação profissional. Mas ele é, também acompanhado pelo qualificativo da busca de conhecimento que expressa a função de pesquisa e pela socialização do conhecimento para comunidades extra-universitárias que expressa, a de extensão.
Ensino - A Escola de Engenharia é reconhecida pelos Governos Federal e Estadual pela sua competência no ensino. Este reconhecimento é observado quando procuram premiá-la através de recursos e de manifestações públicas quanto à competência e pela inserção de representantes em órgãos educacionais decisórios superiores da União. A premiação por meio de recursos ocorre através do Decreto Legislativo nº 4384, de 8 de dezembro de 1921, quando o Governo estabelece um prêmio para a Escola pelos serviços prestados nos seus vinte e cinco anos de atividades, mas também visando estímular a expansão de suas atividades. A premiação através de reconhecimento público pode ser observada no relato da Ata nº 46, da Sessão do Conselho de Administração, de 31/10/25.
Na Ata nº 49, da Sessão do Conselho de Administração, de 30/1/26, encontram-se os indicativos da premiação através da inserção nos órgãos decisórios. O Presidente comunica que, devido ao bom desempenho da E.E. na realização dos exames preparatórios,"estão reservados à Escola dois lugares no Conselho Superior de Ensino: um destina-se ao vice-presidente eleito da Escola; o outro será preenchido por eleição".
Aliado ao reconhecimento pelo ensino ministrado na E.E., cabe mencionar a variedade e amplitude de cursos nela oferecidos que abarcavam desde o ensino fundamental até o ensino superior.
Além dos institutos citados no quadro, a E.E. agregava a Escola Industrial Elementar (1925:82A). Mais tarde, então, em 1929, a criação do Instituto de Educação Doméstica reitera a preocupação.
Resumindo, pode-se dizer que a aproximação da idéia de universidade através do ensino se revela pela diversidade de cursos oferecidos nos diferentes institutos mesmo que eles fossem direcionados às áreas técnicas e não humanistas. Pesa, também, a competência da Escola construída no entrelaçamento das diversas aproximações analisadas,
QUADRO 2 - QUADRO COMPARATIVO DOS CURSOS OFERECIDOS
PELA E.E., ESTATUTOS DE 1922 E 1929.
INSTITUTOS (Ano de Criação) |
IDENTIDADE DA ESCOLA DE ENGENHARIA NOS ESTATUTOS DE 1922 E 1929 |
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ENGENHARIA (1897) |
Seção de Engenharia Civil que visava preparar engenheiros civis |
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JÚLIO DE CASTILHOS (1900) |
Seção de Ensino Primário e Preparatório que visava dar educação fundamental, primária e secundária |
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ASTRONÔMICO E METEOROLÓGICO (1908) |
Seção de Estudos e Ensino de Astronomia, Física e Meteorologia que visava o ensino e a prestação de serviços em astronomia, física e magnetismo terrestre. |
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PAROBÉ (1906) |
Seção de Ensino Secundário e Superior, Técnico e Profissional de Mecânica, de Arte e Ofícios que visava formar mestres e contramestres |
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BORGES DE MEDEIROS(1909) |
Seção de Ensino Superior de Agricultura e Veterinária que visava preparar engenheiros agrônomos e veterinários |
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EXPERIMENTAL DE AGRICULTURA |
Seção de Estudos e Serviços Experimentais de Agronomia e Agricultura que visava estudos físico-químicos do solo, seleção de sementes e preparo industrial dos produtos agrícolas. |
|
ESCOLA INDUSTRIAL E ELEMENTAR (1917) |
Seção de Ensino Primário, Médio e Técnico-Profissional de Mecânica, Artes e Ofícios que visava preparar operários e aprendizes. |
|
INSTITUTOS |
ESTATUTO DE 1922 |
ESTATUTO DE 1929 |
MONTAURY (1908) |
Seção de Engenharia Mecânica, Elétrica e Química Industrial que objetivava preparar engenheiros montadores mecânicos e eletricistas e químicos industriais. |
Seção de Engenharia Mecânica e Elétrica que objetivava preparar mecânicos eletricistas. |
ZOOTECNIA (1909) |
Seção de Estudos e Serviços de Zootecnia, de Ensino Médio e Secundário cujo objetivo era preparar capatazes rurais.. |
Seção de Estudos e Serviços de Zootecnia, de Ensino Médio e Secundário de Agricultura e Veterinária cujo objetivo era preparar técnicos rurais |
ESTAÇÃO ZOO-TÉCNICA (1922). PINHEIRO MACHADO (1929). |
Seção de Ensino Primário de Agricultura e Zootecnia que objetivava preparar operários e capatazes rurais |
Seção de Ensino Primário de Agricultura e Zootecnia que objetivava preparar operários rurais. |
QUíMICA INDUSTRIAL(1927) |
Seção de Ensino e Química Analítica e Industrial que objetivava preparar químicos analistas e industriais, estudos e trabalhos sobre indústrias químicas |
|
EDUCAÇÃO DOMÉSTICA E RURAL(1929) |
Seção de Ensino e Serviço do Lar Doméstico e Rural que objetivava preparar condutoras do trabalho doméstico e rural. |
Fonte: Escola de Engenharia. Estatutos. Porto Alegre: Officinas Graphicas da Escola de Engenharia de Porto Alegre, 1922, 1929.
pois interferem nas relações com o Estado-União. As premiações através de recursos e de reconhecimento público assim o atestam. Não se pode omitir, também, a significativa contribuição da E.E., na formação de pessoal, para a comunidade riograndense, que, desde sua fundação até 1929, teve 25936 alunos matriculados e 1033 formandos, incluídos os diversos níveis e modalidades oferecidos na instituição.
Pesquisa - A segunda das atividades da E.E. que aproxima-a da idéia de universidade pelo conhecimento é aquela relativa à pesquisa. É interessante se registrar que a preocupação com a pesquisa perpassa mais de uma unidade da U.T.. Ela está presente no Laboratório Carlos Chagas que integrava o Instituto Borges de Medeiros, bem como os Institutos Experimental de Agricultura e Astronômico-Meteorológico.
A título de exemplificação, cabe explicitar um pouco das atividades desenvolvidas no Instituto Borges de Medeiros, através do Laboratório Carlos Chagas. O referido Instituto era considerado nos Relatórios da época como "um verdadeiro Instituto de ensino e pesquisa", desenvolvendo trabalhos em diferentes áreas agropecuárias. Realizava diagnósticos de moléstias infecciosas de animais, preparava vacinas e respectivas instruções de aplicações, estudava parasitas buscando o tratamento tanto para animais como para plantas, aprofundava o conhecimento de processos fermentativos para indústrias de lacticínios e de vinhos, desenvolvia processos biológicos de melhoria do solo. As experiências agrícolas eram registradas em planilhas, publicadas em relatórios, nos quais a identificação de canteiros, a cultura antecedente e os processos de adubação estavam explicitados; também eram registradas as datas da semeadura e da colheita com os respectivos índices de produção total e por hectare, por tipo de semente, entre outros (Relatório do Instituto de Zootecnia da EE, 1923).
A preocupação da E.E. com a construção do conhecimento e com sua disseminação manifestava-se, respectivamente, na exigência de trabalho final que o aluno defendia perante uma comissão e na publicação dos conhecimentos produzidos na mencionada Revista EGATEA, "coletânea de estudos originais, de pesquisas e observações valiosas, que muito contribuem para solução dos problemas da ciência, da arte e da produção brasileira e rio-grandense de modo principal" (E.E., Relatório, 1923).
Extensão - A face universitária da E.E. se manifestou, também, através da socialização do conhecimento com inúmeras atividades de extensão realizadas, refletindo preocupação com o desenvolvimento econômico do Estado, com a ascensão cultural da população, com nítida visão antecipativa da vinculação entre cultura e o patamar científico-tecnológico de uma sociedade. É depreendido a partir do Serviço Ambulante da E.E., do oferecimento de cursos noturnos e dos estudos orientados para o desenvolvimento agropecuário e agroindustrial.
5 - ESCOLA DE ENGENHARIA: HEGEMONIA POLÍTICA E CONSTRUÇÃO DA UNIVERSIDADE
O objetivo do presente texto foi analisar a E.E., desde sua fundação, em 1896, passando por sua transformação em Universidade Técnica, em 1922, e constituindo-se em um dos pilares básicos da Universidade de Porto Alegre, (UPA), em 1934, e posteriormente da UFRGS, em 1950. Destaca-se a E.E. como uma instituição científica ímpar para a época pela sua hegemonia com o Estado do Rio Grande do Sul e pela sua face universitária moderna, privilegiadora da pesquisa. O panorama histórico-social do RS se caracterizava pelo predomínio de um governo forte e dominante, apoiado pela Constituição Estadual de l891. Governo que se centralizava na busca da modernização pela inserção do Estado no capitalismo internacional, através de uma proposta social coesa baseada nos princípios comteanos e na prática da leitura de Júlio de Castilhos sobre o positivismo.
Não basta a tomada do poder (função de força) para completar a função hegemônica. É necessário uma revolução social e moral permanente (MACCIOCCHI, 1977) apoiada numa complexa rede com funções educativas e ideológicas. Neste contexto, a E.E., no período estudado, contribuiu para a hegemonia do Estado positivista gaúcho através da manutenção do poder do grupo castilhista (corporificado politicamente no PRR - Partido Republicano Riograndense) pela criação de condições de consenso e capacitação da classe dirigente que objetivava a consolidação do modo de produção capitalista no Estado.
A E.E., como construtora da hegemonia do grupo positivista no poder, apresenta uma concordância doutrinária que a torna parte ideológica e instrumental do Estado. A unidade de princípios entre o PRR e a Escola, os constantes elogios da Escola aos membros do governo gaúcho, a sustentação financeira da Escola pelo Estado e a presença de figuras proeminentes ocupando posições concomitantemente no setor educacional e no setor legislativo e/ou executivo assim o atestam.
Por outro lado, a hegemonia que se desenvolveu entre Estado-RS e E.E. interfere na relação entre Estado-União e E.E. Está no cerne a questão de identidade de princípios e coesão em nível de RS, o que faz com que a E.E. coloque em prática a concepção positivista de cursos técnicos, diferente do restante do país, e que obtenha reconhecimento da União. Convém lembrar que o ensino superior, mesmo que permitida a iniciativa privada, era responsabilidade do governo central.
O presente estudo também mostrou que a E.E., como U.T., apresenta aproximação com a Universidade Moderna em sua estrutura político-administrativa e em suas funções finalísticas que tratam do conhecimento.
A aproximação da idéia de universidade pela estruturação político-administrativa ocorre pela autonomia das unidades universitárias, pela não duplicação de meios e pelo funcionamento semestral.
A aproximação da idéia de universidade pelo conhecimento ocorre pela diversidade de áreas em que o ensino é ministrado, pelo interesse em desenvolver pesquisas vinculadas às necessidades da comunidade e pelo desenvolvimento de atividades de extensão.
Quanto ao ensino, os cursos oferecidos eram de áreas diversas se bem que técnicas. A articulação teoria-prática e a produção de trabalhos atesta a importância dos liames ensino e construção do conhecimento. Outro aspecto que se ressalta é a marcante preocupação com a educação feminina. O preparo "de condutoras de trabalhos domésticos e rurais" era gratuito, consentâneo à orientação positivista de valorização da mulher como geradora e educadora de filhos.
No que se refere à pesquisa é de se destacar a produção dos institutos caracterizada pela precisão de registros e controles e orientada para o atendimento de necessidades econômico-sociais da época, marcadamente as agropecuárias. Nota-se o embrião de ações que visam a formação "de nova geração de pesquisadores" através de produção de final de curso e de atividades para disseminar a produção para a comunidade acadêmica através da revista EGATEA.
Finalmente cabe lembrar o momento que veio se desdobrar na criação da Universidade de Porto Alegre (UPA). Vivia-se o afloramento das condições iniciais do processo de industrialização. Não era mais a E.E. como U.T., mas a UPA, com multidiversidade de campo que viria atender condições .para o enfrentamento científico-tecnológico. Sob tais reflexões é que se entende a nostalgia de SOARES (1971) ao afirmar que "depois que os remanescentes da Escola de Engenharia de Porto Alegre passaram a integrar a Universidade Porto Alegre, a unidade de comando não mais se restabeleceu"(SOARES, 1971:23). No interior desta nova universidade a E.E. deveria encontrar sua via revitalizadora. Ao mesmo tempo em que a U.T. fenecia, estavam sendo criadas condições para a emergência da UPA.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VIANA. Luiz Duarte. Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: GEU/UFRGS, 4 de ago. 1992. Entrevista a Franco, M. E.
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