REFORMA DO ESTADO E REFORMA DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL

JOÃO DOS REIS SILVA JUNIOR*

VALDEMAR SGUISSARDI*

Nos últimos cinco anos, tenta-se fazer do Brasil o país das reformas institucionais: econômica, tributária, fiscal, da previdência, produtiva, educacional, etc, numa palavra, do Estado e, portanto, da Constituição. Nesta cruzada reformista empenha-se seriamente o governo federal. Para ilustrá-lo examine-se o informe publicitário pago pelo governo na Folha de S. Paulo de 08 de abril. Chama a atenção o slogan Estabilização e Reformas ao lado da bandeira brasileira, compondo com a manchete SEM REFORMAS NÃO HÁ DESENVOLVIMENTO e um textode 2/3 de página vazado em termos administrativo-eficientistas sobre o sucesso das reformas e o bem-estar individual e coletivo que elas provocariam. Bastará o governo promover certos ajustes e o país encontrará, feitas as reformas, o caminho da modernidade, via desenvolvimento. Com este, todos os problemas estruturais do Brasil seriam superados e a dignidade do cidadão, enfim, restabelecida. Uma bela estória e uma forma simplista de compreender-se reformas. Pressupõe-se a existência de harmonia, estabilidade e continuidade de determinada situação social, que, com ajustes, tornar-se-ia democrática, justa e igualitária.

Neste texto, interessa-nos expor alguns elementos de compreensão das mundanças na Educação Superior Brasileira (ESB) no âmbito deste movimento de reformas por que passa o país. Para isto buscaremos identificar e analisar as principais características do que se pode denominar Reforma da Educação Superior Brasileira (RESB), assim como da Reforma Administrativa do Estado (Ministério da Administração e da Reforma do Estado - MARE), à qual aquela se acha atrelada, a partir dos principais documentos produzidos por estes ministérios e do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação em tramitação no Congresso. Em seguida, visando à melhor compreensão e crítica da RESB e, ainda, à formulação de hipóteses quanto a seu significado histórico, lançaremos mão de elementos teóricos que nos permitam superar o neofuncionalismo presente nas propostas oficiais.

A Reforma da Educação Superior diante da Reforma do Estado

No âmbito do governo, a bandeira do ajuste neoliberal, patrocinado pelos organismos internacionais para o conjunto dos países latino-americanos, encontra forte acolhida do MARE, cujo diagnóstico da crise mundial e nacional - presente nas suas propostas - segue a ótica e as diretrizes daqueles organismos. Nesse diagnóstico destaca-se o papel do Estado como causa da crise e a necessidade de sua reforma.

A cada dia mais afinados com esse diapasão se põem as diretrizes e propostas oriundas do MEC, assim como o núcleo essencial da nova LDB, nos termos do Projeto Darcy Ribeiro.

Para o Ministro Bresser, reformar o Estado

...significa superar de vez a crise fiscal, de forma que o país volte a apresentar uma poupança pública que lhe permita estabilizar solidamente os preços e financiar os investimentos. Significa completar a mudança na forma de intervenção do Estado no plano econômico e social, através de reformas voltadas para o mercado e para a justiça social. Reformar o Estado significa, finalmente, rever a estrutura do aparelho estatal e do seu pessoal, a partir de uma crítica não apenas das velhas práticas patrimonialistas ou clientelistas, mas também do modelo burocrático clássico, com o objetivo de tornar seus serviços mais baratos e de melhor qualidade.

Considera a crise do Estado a causa básica da crise econômica por que o país vem passando nos últimos 15 anos. Por crise fiscal entende a perda do crédito público e a poupança pública negativa. Por crise do modo de intervenção, o "esgotamento do modelo protecionista de substituição de importações". Finalmente, por crise do aparelho do Estado, entende o clientelismo, a profissionalização insuficiente e o "enrigecimento burocrático extremo" da Constituição de 88.

Condena quase tudo o que a Constituição de 88 teria normatizado no campo da administração estatal, em especial a fixação do Regime Jurídico Único do funcionalismo público federal e a transformação de celetistas em estatutários.

Como premissas das propostas de reforma do Estado, propõe que o Estado moderno se constitua de duas esferas fundamentais: "um núcleo burocrático voltado para consecução das funções exclusivas do Estado, e um setor de serviços sociais e de obras de infra-estrutura". Comparando esses núcleos, estabelece diferenças quanto à sua natureza: no núcleo burocrático, o essencial seria a segurança das decisões tomadas; no setor de serviços, a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos. No núcleo burocrático, o princípio administrativo básico seria o da efetividade, o da capacidade de realização das decisões; no setor de serviços, o princípio seria o da eficiência ou de uma relação ótima entre qualidade e custo dos serviços à disposição do público.

Estas distinções conduzem ao sentido último dessa reforma, que se traduz numa a administração pública mais flexível, eficiente, menos onerosa, visando melhor qualidade aos serviços sociais do Estado.

Além da flexibilização, propõe-se como outra grande meta da reforma do aparelho do Estado, no plano social, sua radical descentralização.

A eficiência, agilidade, etc. dos serviços do Estado deveriam ser para o Ministro semelhantes às do setor privado. Para isso procura uma forma de administração "mais flexível do que a adotada no núcleo burocrático da administração direta" e encontra-a, principalmente, no projeto das "organizações sociais".

O grande obstáculo à consecução dessas metas é a rigidez burocrática imposta pela Constituição de 88, que requereria urgente reforma.

Como se atingirá o objetivo de maior flexibilidade? Entre outras,

(1) permitindo a existência de mais de um regime jurídico dentro do Estado; (2) mantendo o regime jurídico estatutário apenas para os funcionários que exercem funções no núcleo burocrático do Estado; (...).

Da mesma forma, propõe uma série de medidas para tornar a previdência dos funcionários menos onerosa e mais semelhante à vigente no setor privado.

Para conduzir às chamadas "organizações sociais", à dita "publicização" dos serviços públicos, dois projetos são considerados essenciais:

...descentralização dos serviços sociais do Estado, de um lado para os Estados e Municípios, de outro, do aparelho do Estado propriamente dito para o setor público não estatal. Esta última reforma se dará através da dramática concessão de autonomia financeira e administrativa às entidades de serviço do Estado, particularmente de serviço social, como as universidades, as escolas técnicas, os hospitais, os museus, os centros de pesquisa, e o próprio sistema de previdência. Para isso, a idéia é de criar a possibilidade dessas entidades serem transformadas em "organizações sociais" .

Organizações sociais serão organizações públicas não-estatais - mais especificamente fundações de direito privado - que têm autorização legislativa para celebrar contrato de gestão com o poder executivo, e, assim, poder, através do órgão do executivo correspondente, fazer parte do orçamento público federal, estadual ou municipal.

Ao programa de transformação de entidades estatais de serviço no que chama de "entidades públicas não-estatais" deu-se o nome de "publici-zação". Para ele, isto permitiria a essas instituições ampla autonomia na gestão de suas receitas e despesas, pois continuariam a contar com a garantia básica do Estado que lhes cederia, por contrato de gestão, seus bens e seus funcionários estatutários. Agora, porém, se trata de entidades de direito privado, que escapam "às normas e regulamentos do aparelho estatal, e particularmente de seu núcleo burocrático".

Ao contrário do que analistas e seus aliados acreditam que irá acontecer fatalmente, tenta convencer aos eventuais opositores e defensores dos serviços públicos estatais, que...

Neste processo o importante é evitar a privatização e a feudalização das organizações sociais, ou seja, a apropriação destas por grupos de indivíduos que as usam como se fossem privadas. Com esse objetivo, uma série de cautelas legais e administrativas serão adotadas, tomando-se, entretanto, o cuidado de limitar os controles por processo, já que o essencial será, tanto da parte do próprio Estado, quanto da sociedade, o controle por resultados das organizações sociais.

Através da Proposta de Emenda Constitucional - PEC No.173/95, trata o Ministro de garantir o substrato legal para a reforma pretendida.

Em relação a esses alertas do Ministro, cabe considerar o que diz I. M. Coelho, a quem a transferência das atividades desenvolvidas pelas instituições de ensino superior para as organizações sociais "configura, em verdade, uma privatização do ensino público atualmente ministrado pela União". Chama atenção o jurista para as dificuldades que haveria em operar-se essa transferência, porque, além de significar verdadeira privatização, existe o "agravante de que essa medida sinaliza para uma posterior e imediata implantação do ensino pago..." Afirma ainda I. M. Coelho que, do ponto de vista jurídico, o que impediria esta transformação é a Constituição - especialmente os artigos 39 e 206, incisos IV e V - que asseguram a gratuidade do ensino público e o regime jurídico único, de natureza estatutária, para docentes e corpo técnico-administrativo dessas Universidades. Sugere que primeiro se aprove nova redação desses artigos, conforme já prevê a PEC No. 173/95, pois, somente isto viabilizaria a adoção do modelo das organizações sociais para o setor educacional: "Trata-se, então, de conditio sine qua non para levar adiante, digamos, a privatização do ensino superior".

Diante dessas dificuldades, que, no dizer desse defensor da proposta do MARE, "poderiam pôr em risco a própria idéia das organizações sociais", sugere que, em lugar do segmento universitário - "o menos adequado à experimentação do modelo proposto" - se comece por aplicar o novo modelo a outras entidades, "como as de pesquisa". Nelas já existiria a tradição de financiamentos, públicos ou privados, repassados diretamente a pesquisadores e/ou instituições, dos quais se cobrariam "apenas resultados, sem que a ninguém ocorra a idéia de questionar o modelo jurídico subjacente a essas atividades".

Finalmente conclui seu parecer de modo muito claro e convicto, sugerindo que se trabalhe para a aprovação da reforma constitucional:

...pois somente assim poderemos conceber e implantar um modelo aberto de organização universitária, cuja idéia central haverá de ser a da efetiva autonomia das universidades, livres das camisas de força que, ao longo do tempo, paradoxalmente, elas vestiram com as próprias mãos.

Em conclusão, nossa opinião é no sentido de que, nos termos e condições em que está concebido, o modelo de Organizações Sociais (...) não tem aplicação à FUB/UnB, que não poderá ser transformada, nem muito menos extinta, para dar origem a uma nova entidade que - coincidentemente - desenvolveria as mesmas atividades da instituição anteriormente existente, nas mesmas instalações desta e, praticamente, com os mesmos corpos docente e técnico-administrativo, com a única diferença de que tudo isso (...) seria feito sob regime jurídico de direito privado.

C. M. Clève alerta para os perigos de fraude constitucional, caso se decida transformar as IFES em "organizações sociais" sem reforma da constituição e insiste no caminho aberto para o fim da gratuidade

Antes mesmo da aprovação de qualquer reforma constitucional que desse nova redação aos artigos 39 e 206, incisos IV e V, da Carta de 1988, a Secretaria de Reforma do Estado do MARE tornava público, em 1o. de julho de 1995, o documento/roteiro denominado Etapas para viabilização da aplicação da lei de organizações sociais na recriação de universidade pública a ser administrada por contrato de gestão, onde se explícita o que se deve entender por recriação de universidade pública não estatal e os passos para essa mudança.

Não será por acaso que as reações - como tem ocorrido em ocasiões semelhantes (em 1985, em relação ao GERES, por exemplo), de quase todos os setores envolvidos - são imediatas e cáusticas.

A diretoria da ANDES, em editorial do InformANDES , assim se manifesta:

O Estado, nesse documento, é pensado como um conjunto de aparelhos absolutamente neutro em relação às classes. Assim sendo, busca-se, em tese, dar racionalidade ao aparentemente irracional, flexibilidade à moldura rígida desses aparelhos. (...) Examinando-se com todo cuidado, verifica-se que o MARE busca apresentar como irracional tudo o que é popular e/ou tudo aquilo que foi construído democraticamente. Na prática, a tese do MARE significa por um lado a criação de margens de liberdade para a ação dos governantes e a adequação à lógica do mercado, tornada racionalidade social. (...) Trata-se da apropriação ardilosa do discurso da modernidade.(...)

Na realidade, se afirma, o tempo todo, a perspectiva gerencial. Vale ressaltar que, sob o pretexto da agilidade, da desburocratização, da criatividade, o que se reafirma é a busca de uma margem de liberdade governamental, vale dizer, da desobrigação do Estado com as questões sociais.

Não muito diversa é a reação do reitor Newton Lima Neto, ex-presidente da ANDIFES e com ela afinado: inicia assinalando que a proposta do MARE foi concebida à revelia de uma democrática discussão com a comunidade universitária. Aponta em seguida para o artifício semântico utilizado para escamotear o processo de privatização de um serviço público estatal.

Perversamente denominado de modelo de "publicização", o projeto caracteriza-se, de fato, como a manobra mais radical até hoje proposta pelos defensores do Estado-mínimo no campo da educação superior.

Há muito tempo as IFES clamam por autonomia. O MARE, e com ele o MEC, dispõe-se a concedê-la, mas não na forma esperada. Ao lado da liberdade de manter, expandir e aperfeiçoar programas, estariam livres para "captarem recursos no mercado", propiciando economia ao Tesouro da União. Entre as fontes de captação de recursos: a cobrança de mensalidades e empréstimos bancários. A concepção governamental sobre a educação superior é a de que ela se constitui em gasto e não em investimento e "como tal deve ser gerenciada pela lógica do mercado".

A questão do financiamento é o cerne da preocupação do MARE. (...) Os argumentos apresentados pelo ministro Bresser quanto à não-compulsoriedade do modelo e à garantia de que o volume de recursos ao sistema manter-se-ia inalterado não resolvem o problema. É evidente que as instituições que optarem pelo novo modelo poderão ser inicialmente favorecidas, mas, com o tempo, todas serão prejudicadas com a quebra da unidade do sistema federal, indispensável à sua própria existência.

O MARE e o MEC estão produzindo os instrumentos administrativos para a realização da Reforma da Educação Superior Brasileira, que se efetiva também no Congresso Nacional com a eventual aprovação do Projeto Darcy Ribeiro de LDB - alinhado às diretrizes que orientam essa reforma - e que dará sustentação constitucional aos atos administrativos reformistas do Poder executivo.

Ignorando sete anos de debates da Câmara dos Deputados com entidades e organismos representantes dos mais variados setores da Sociedade Civil e acusando o projeto dali originário de excessivamente detalhista, corporativista e inviável, e em meio a denúncias de desrespeito a normas regimentais, o Projeto de LDB do Sen. Darcy Ribeiro acaba de ser aprovado pelo plenário do Senado e tramita em regime de "urgência" na Câmara, com grandes chances de aprovação.

No seu capítulo consagrado ao Ensino Superior, verifica-se, antes de tudo, o propósito da diversificação institucional, quando, em seu art. 43, se diz que as IFES se organizarão como universidades, centros de educação superior, institutos, faculdades e escolas superiores. À exceção da universidade, sumariamente definida, a nova lei é omissa quanto a parâmetros ou requisitos para definição das demais formas de organização universitária, à exigência de concurso público para ingresso no magistério e ao regime de trabalho em dedicação exclusiva nas IFES.

Embora estejam implícitas, no artigo que define a universidade, as atividades de ensino, pesquisa e extensão, parece sintomática a omissão do princípio de sua indissociabilidade, conforme reza a Constituição de 88, quando isto se casa com o teor da reforma proposta pelo MARE e a criação das "organizações sociais" em lugar das atuais IFES.

Se combinado com a proposta do MARE de extinção das atuais IFES e sua transformação nas "organizações sociais", vê-se a "oportunidade" do contido no caput do artigo 53: gozarão, na forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal.

A lei prevê quadros de pessoal docente, técnico e administrativo, assim como planos de cargos e salários individualizados para cada universidade, atendidas as normas gerais pertinentes e os recursos disponíveis. Isto significa em essência: o fim da unicidade de carreira do pessoal, da isonomia salarial, ou seja, a pretendida diversificação das IFES, porque é quase impensável que, nos moldes da política de reforma do Estado de corte neoliberal, sejam mantidas normas como as do atual Regime Jurídico Único (RJU), e porque, com a liberdade de obtenção de recursos junto a fontes públicas ou privadas, de que gozarão as universidades públicas, os recursos disponíveis serão muito diferenciados entre essas instituições (art. 52, parágrafo único, V).

Tanto pela reforma administrativa do MARE como pela nova LDB, as universidades adquiririam uma autonomia de que não gozam hoje: elaborar e aplicar seu próprio orçamento, sem submetê-lo à aprovação do MEC, adotar regime financeiro e contábil próprio, reavaliar operações de créditos, efetuar transferências. Legitima-se o financiamento externo do ensino superior, o que pode significar gradativo descompromisso do Estado com a plena manutenção do ensino público e gratuito (art. 52, inciso X). , embora o artigo 54 da LDB afirme que "Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas". Ocorre que, se efetivada a transformação das atuais IFES em organizações sociais, a União deixará de possuir instituições de educação superior por ela mantidas. Tratar-se-á de instituições "públicas não-estatais" ou "fundações de direito privado". A União será apenas uma concessionária de direitos, mediante contratos de gestão, e supervisora dos resultados. Descentraliza-se a gerência, mas se mantém o controle centralizado.

Se o vínculo do MEC, no capítulo da Educação Superior, com as propostas da reforma do Estado (MARE), revela-se importante na forma de encaminhamento do Projeto Darcy Ribeiro de LDB, ele também se verifica em muitos outros de seus documentos e ações, tais como: (1) no Planejamento Político-Estratégico - 1995/1998 (MEC), cujo diagnóstico da crise se assemelha ao do MARE, em que "o centralismo paralisante, produto de uma burocracia desinformada, incompetente, estritamente corporativa", é responsabilizado por todos os problemas da área; (2) nas tentativas de convencer dirigentes das IFES a acatarem o modelo, ainda não aprovado pelo Congresso, das "organizações sociais"; (3) na defesa dos exames de final de curso, instituídos via Lei 9.131/95 (que visariam a hierarquização das universidades e dos seus respectivos alunos, através de conceitos registrados em certificados), no teor do anteprojeto de Lei que trata da reorganização da Educação Profissional e do Ensino Técnico, etc.

O compromisso do MEC com o ajuste neoliberal do aparelho do Estado, mormente no campo da privatização da esfera pública, verifica-se ainda pelo incentivo, no âmbito das IFES, à criação de Fundações de Apoio Universitário, ao estabelecimento de convênios e parcerias com empresas privadas e com IFES particulares, à cessão do patrimônio público para desenvolvimento de pesquisas que visam atender a interesses privados; aos mecanismos de complementação salarial que eliminam o regime de dedicação exclusiva e fragmentam a luta pela valorização da carreira docente, ao repasse de verbas públicas paras IFES particulares, sem nenhum controle social de sua aplicação.

Não é por outra razão que uma das críticas maiores dirigidas ao MEC, por entidades de dirigentes e de docentes e funcionários técnico-administrativos, é o de ter-se deixado atrelar às políticas de desmonte do Estado de iniciativa do Ministro Bresser.

A análise específica das mudanças em curso na educação superior brasileira, em meio às reformas do Estado, nos permite uma primeira aproximação do entendimento de seu significado. Antes de tudo, chama a atenção o modus operandi pelo qual ela se faz, isto é, via medidas provisórias e administrativas e outros procedimentos pertinentes ao Executivo, como se dissessem respeito apenas ao aparelho do Estado e mais especificamente a esse Poder. A democracia, tanto reivindicada, à época do regime militar-autoritário, pelos atuais ocupantes do Palácio do Planalto, parece, hoje, terminar nas eleições. A partir daí tudo seria possível e legítimo. As instituições e entidades organizadas da sociedade civil nada mais deveriam dizer e parece serem vistas como ilegítimas por se constituírem em obstáculos corporativos à realização das reformas oficiais. A sociedade civil, numa palavra, é alijada da discussão e fiscalização das reformas que lhe concernem. Estamos em presença do fenômeno que MARQUINA E NOSIGLIA assinalam como tendência para as democracias latino-americanas na atual conjuntura neoliberal, a do hiperpresidencialismo, marcado pela "restricción en la participación política, social y material de los ciudadanos, entre otras características". Defrontamo-nos com problemas não somente político-institucionais (democracia propriamente dita), mas igualmente de ordem gerencial (capacidade de governo), sendo a "delegação", a quem é eleito, de plenos poderes para agir a característica mais importante nesta conjuntura.

Analisada a conjuntura política e gerencial do Estado, no Brasil, parece não se afastar muito da assinalada para os países vizinhos. São dessa natureza as relações entre a sociedade civil e o Estado, depreendidas da estratégia reformista implementada pelos titulares tanto do MARE, do MEC e do executivo federal como um todo.

Quanto às modificações da ESB, o acima exposto permite-nos observar quatro de suas características fundamentais: privatização, diversificação, flexibilização e descentralização institucionais.

A transformação das IFES em organizações sociais com autonomia plena para gerir e captar seus recursos expõe a educação superior a um processo de privatização menos explícito do que aquele acorrido durante a década de 70, mas não menos efetivo. Além do que, a implantação do ensino pago nas IFES parece estar no horizonte da Reforma: as aberturas jurídicas já estão sendo postas. Essa transformação exige a mudança da natureza do financiamento da educação superior, deslocando-o do setor público para o privado, em especial, para o produtivo. Isto impõe mudanças no processo acadêmico-científico das IFES: a pesquisa e suas demais atividades ficariam subordinadas à lógica privada, impondo-se, desta forma, uma perda da capacidade crítica e reflexiva própria da natureza do trabalho acadêmico-científico com graves conseqüências para a formação dos profissionais brasileiros.

A transformação das IFES em organizações sociais, exigindo um estatuto para cada instituição, a omissão da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão na definição de universidade, o tipo de financiamento que cada uma conseguirá, configuram um quadro de intensa diversificação da educação superior. Este processo carrega em si, além das mudanças administrativas, alterações substantivas no conteúdo acadêmico-científico das atividades produzidas nas IFES.

Por outro lado, a eliminação do concurso público e da dedicação exclusiva para o exercício da docência nas IFES favorecerá a flexibilização da estrutura universitária, ao possibilitar o professor temporário, o que afetará de forma negativa a identidade profissional docente.

A discussão sobre as mudanças na educação superior apresentam-se num tom administrativo-normativo. No entanto, pode-se depreender do acima exposto que essa reforma transcende o âmbito administrativo e atinge diretamente a ciência, a tecnologia e o universo simbólico-cultural, a partir do que construímos nossas representações da realidade. O tema da reforma da ESB deve ser tratado também como um problema de relações entre o saber, o poder e a ideologia em um momento de transformações nas várias esferas da atividade humana.

Reformas Educacionais, Mudança Social e Epistemologia

Estudar a reforma da ESB a partir de uma perspectiva crítica e que tenha em conta as relações entre saber, poder e ideologia, implica na adoção de uma abordagem teórica que possibilite a crítica científica e uma compreensão da reforma que supere o enfoque funcionalista do pensamento oficial. Dentre os autores que se tem ocupado do tema das reformas educacionais dos anos 70/90, destacamos a contribuição de Popkewitz. Para ele, as reformas educacionais devem ser entendidas a partir do desenvolvimento histórico, das relações sociais, enquanto mecanismos de regulação social e um problema de epistemologia social. Tratando da regulação social afirma Popkewitz que

(...) la ecologia de la reforma está relacionada con las pautas de regulación social de la escolarización. La escolarización de masas constituyó una reforma fundamental de la modernidad, institucionalizada durante los últimos doscientos años, cuando el Estado moderno asumió las tareas de socialización y educación en respuesta a las rupturas habidas en las pautas de produción y reprodución. La significación de la pedagogia moderna constituy su enlace con los problemas de la regulación social; la pedagogia vincula las preocupaciones administrativas del Estado con el autogobierno del sujeto. Las formas de conocimiento en la escolarización encuadran y classifican el mundo y la naturaleza del trabajo que, a su vez, tiene el potencial para organizar y configurar la identidad individual.

Para esse autor, a escolarização e o ato educativo constituem-se em um problema de epistemologia social:

(...) La epistemologia [social] proporciona un contexto en el que pueden cosiderarse las reglas y normas mediante las que se forma el conocimiento sobre el mundo, las distinciones y categorizaciones, las formas de responder al mundo y la cocepción del "yo". De forma concurrente, la epistemologia social toma los objetos constituidos en el saber de la escolarización y los define como elementos de la práctica institucional, pautas de relaciones de poder históricamente configuradas que dan una estructura y coherencia a los caprichos de la vida cotidiana. Pienso, por ejemplo, en los conceptos cambiantes de reforma, profesionalidad y ciencia de la educación como componentes de un contexto material que describen e incorporan los conceptos. Estas palabras asumen significado en el contexto de un complicado conjunto de relaciones que se combinan para producir la escolarización.

Para Popkewitz, as reformas educacionais dos anos 70/90 relacionam-se com os problemas de regulação social emergentes durante o processo de sedimentação do Fordismo logo depois da II Guerra Mundial. Assim, busca no método histórico a possibilidade teórica de relacionar os acontecimentos passados com os fatos atuais em estudo para o entendimento das mudanças sociais e as demandas postas para a escolarização. Em síntese, essas reformas modernizam as instituições escolares, contribuindo para a regulação social em dada época histórica, em que se realizam mudanças decorrentes da transição de regimes de acumulação.

O Fordismo e a Nova Ordem Internacional

A crise do capitalismo mundial da década de 70 expressou a transição entre diferentes modelos de desenvolvimento: do Fordismo à nova ordem mundial. No período que se inicia no pós-guerra até os anos 1970, o modelo de desenvolvimento predominante no centro da economia mundial foi denominado como Fordismo. Este estágio do capitalismo caracteriza-se como um sistema de acumulação intensiva de capital, associado à produção e ao consumo de massa, tendo, no Estado, a instituição estratégica produtora da sincronia entre a oferta e a procura, equilíbrio alcançado através de políticas de compensação social. Este modelo de desenvolvimento contém

...um paradigma industrial alicerçado em boa medida na intensa utilização de formas tayloristas e fordistas de organização do trabalho. Vale dizer, um padrão industrial caracterizado por um elevado grau de mecanização e profunda divisão técnica do trabalho.

A organização e o processo de trabalho passaram a apresentar queda de produtividade em razão da obsolescência da base tecnológica que lhes dava sustentação. O capital invertido não produzia a rentabilidade costumeira, em um mercado cada vez menor - relativo à produção em parâmetros fordistas. Este cenário favoreceu o aparecimento do desemprego e de um progressivo surto inflacionário, fatos que se agravaram com a crise do petróleo. Este quadro econômico contraditório e politicamente instável ensejou movimentos sociais, com orientações diferentes e até antagônicas, a tornarem explícita a crise que até então era potencial.

A vertente produtiva tem na articulação da microeletrônica, da informática, da química e da genética, seu novo padrão tecnológico para a superação da crise, através de um salto qualitativo de produtividade. O capital internacionalizou-se de maneira intensa e privada diante das limitações impostas pelo mercado, de um lado, e, por outro, pelas condições históricas dos países-destino e pela possibilidade técnica de controle das informações. O Estado-providência entra em colapso. Possui uma grande estrutura e gastos e já não tem a mesma posição estratégica que ocupava durante a predominância do Fordismo.

Este cenário possibilitou a emergência da ideologia neoliberal: a busca do Estado mínimo e da soberania da lógica do mercado, em um momento em que o capital necessita estruturalmente da globalização e não da interferência do Estado nos moldes do Fordismo. A crise do Fordismo, enquanto forma de organização do trabalho e enquanto modelo de desenvolvimento do capitalismo, inaugura um novo momento histórico, em cuja centro estão a nova ordem mundial e o neoliberalismo. Esta nova etapa vai, pois, delineando-se por meio da superação das contradições produzidas historicamente pelo Fordismo e, pode ser considerada como outro regime de acumulação.

David Harvey, em seu livro Condição Pós-Moderna, explora o contraste entre a organização social e produtiva do Fordismo e a do atual regime de acumulação capitalista, a partir de uma descrição comparativa entre os dois momentos do capitalismo em relação: às tendências de transformação do Estado, à organização do trabalho, à ideologia e ao espaço (elaborada esta por Swyngedouw). Indica, nesta síntese, as seguintes tendências de reforma do Estado capitalista:

...desregulamentação/re-regulamentação; flexibilidade; divisão/individua-lização, negociações locais ou por empresa; privatização das necessidades coletivas e da seguridade social; desestabilização internacional; crescentes tensões geopolíticas; descentralização e agudização da competição inter-regional/interurbana; Estado/cidade empreendedor; intervenção estatal direta em mercados através da aquisição; políticas regionais "territoriais"...

Segundo Harvey, o mercado de trabalho tornar-se-á cada vez mais diversificado e fragmentado, resultando em dois grupos de trabalhadores: central e periférico. Para o primeiro, o trabalho é cada vez mais seguro, porém progressivamente mais reduzido. Para o segundo, cada vez maior, o trabalho será temporário e em mutação, obrigando o trabalhador a adaptar-se sempre a novos trabalhos. Os principais traços ideológicos da nova fase do capitalismo consistiriam no consumo individualizado, na capacidade de adaptação e na especificidade e individualização.

Concluindo

Como compreender a reforma da Educação Superior Brasileira enquanto um processo de modernização da instituição educacional em geral, com destaque para o seu nível mais elevado, quando o governo brasileiro produz um projeto político em cujo centro se encontra a inserção nacional na economia mundial?

Estas modificações na ESB têm um viés bastante explícito: a racionalização gerencial do sistema de ensino superior para um "atendimento com melhor eficiência e qualidade ao cidadão brasileiro". Ressalte-se que todo o discurso pró reforma do Estado e da educação superior tem-se orientado por este eixo. No entanto, precisamos atentar para a conjuntura, do país, de transição a outro regime de acumulação capitalista, que acompanha a tendência dos países cêntricos. Dá-se, quase universalmente, uma ruptura nas diversas formas de organização da vida humana no âmbito material e no âmbito simbólico-cultural.

Este estágio de desenvolvimento do capitalismo e a inserção nacional neste contexto estão impondo um novo espaço social e exigindo novos padrões e hábitos da população. Importa, pois, compreender a reforma da educação superior como modernização da instituição social para a produção de uma nova subjetividade, conforme teoriza Popkewitz. Os instrumentos administrativos devem ser aqui entendidos como formas de mudança nas culturas organizacionais das IFES e de outras instituições sociais que com elas se relacionam. Há nelas a produção de um saber que altera as representações que fazemos da realidade em que vivemos. Na confluência das culturas institucionais e do conteúdo produzido nas IFES há uma epistemologia social que influencia a produção da subjetividade de todos os sujeitos envolvidos com a produção e socialização do conhecimento. A reforma da educação superior ancora-se, como já dito, em quatro características básicas: privatização, diversificação, flexibilização e descentralização da estrutura das IFES. Estas características estão, ao mesmo tempo, presentes na proposta de reforma do Estado (do MARE) e enquanto traços ideológicos do novo momento histórico do capitalismo.

A reforma da educação superior faz parte, portanto, de um processo mais amplo e profundo de modernização das instituições sociais com o objetivo de assegurar a hegemonia capitalista a partir de valores produzidos nesta nova etapa deste modo de produção. A modernização institucional neste momento busca fazer das instituições um espaço social mediador entre as necessidades administrativas do Estado e a subjetividade do indivíduo. A produção desta subjetividade realiza-se institucionalmente, daí a necessidade das reformas impostas pelo governo disposto a concretizar seu projeto político.