POLÍTICAS PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR E CULTURA UNIVERSITÁRIA:

O EXERCÍCIO DA SOLIDÃO NO IDEÁRIO NEOLIBERAL

 

MANCEBO, Deise

 

POLÍTICAS PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR: PRINCÍPIOS DO MODELO GERENCIAL

Assistimos no Brasil, à emergência vigorosa de um modelo institucional gerencialista que, entre discursos políticos, atos legislativos e medidas aparentemente isoladas de administração e gestão, enfeixados na reforma administrativa do Estado brasileiro, ganha adeptos não só entre setores conservadores e tecnocráticos, mas também no interior de segmentos, que até duas décadas atrás, destacavam-se na luta pela institucionalização de um modelo político-participativo de universidade.

Este modelo gerencial apresenta por referência básica, o atendimento à lógica empresarial e ao mercado competitivo, adotando concepções instrumentais/funcionais de autonomia e de participação. O setor privado, através de dispositivos variados, constitui-se numa fonte de inspiração privilegiada e, nas suas versões mais puras, a fórmula apregoada para a superação da crise de legitimidade da universidade (Santos, 1997) aparece associando-a "a uma imagem de moderna estação de serviços, funcionalmente adaptada às exigências do mercado e às necessidades dos seus clientes e consumidores" (Lima, 1997, p. 38).

Na análise dos principais documentos referentes à reforma administrativa do Estado e de seus desdobramentos para a universidade, formulados principalmente pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) e acompanhados de perto pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), pode-se localizar, de forma evidente, um conjunto de propostas condizentes com o modelo institucional gerencialista e uma afinidade orgânica com os ajustes neoliberais apregoados pelos organismos internacionais. Em síntese, este modelo gerencial, tomado em suas repercussões para a educação superior pública brasileira, pode ser analisado sob cinco grandes princípios :

O primeiro deles é o da racionalização de recursos, segundo a qual é descartada a centralidade do Estado brasileiro na manutenção das políticas sociais, dentre elas a da educação superior, através da transferência das decisões de investimento e dos conflitos gerados nesta seara, para a esfera do mercado. De outro modo, enxugar a máquina estatal e retirar-lhe o pesado ônus de financiar as instituições de educação superior, incluindo a pós-graduação é, com certeza, um mote central, defendido pelos interlocutores da atual reforma do Estado, no que se refere à educação superior do país. A aplicação deste princípio implica transformações substanciais para os sistemas de educação superior em dois sentidos. Primeiro, na direção de impor-lhes a diversificação das fontes de recursos, onde pode-se visualizar as propostas em trânsito sobre o ensino pago, o incentivo à criação de Fundações de Apoio Universitário, a prestação de serviços a assessorias e empresas, deslocando progressivamente o financiamento das universidades do setor público para o privado, em especial, para o produtivo. Segundo, em relação ao próprio processo acadêmico-científico, conduzindo o ensino e a pesquisa a uma subordinação à lógica privada, impondo, desta forma, uma perda da capacidade crítica e reflexiva inerente a este trabalho.

Segue-se o princípio da gestão direcionada aos resultados, para cuja consecução a avaliação é o dispositivo central e até mesmo pré-condição para que uma instituição de educação superior mantenha a credencial de universidade e a autonomia daí advinda. A avaliação gerencial compreende o controle do sistema educativo, por parte de um ‘Núcleo Central", sem intervir diretamente na sua gestão. Em síntese, a história das instituições é desconsiderada e todos os percalços políticos e institucionais atravessados não se constituem em indicadores para ações eficazes, desencadeadas por parte do governo, visando à melhoria da qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Em contrapartida, a medição, via de regra quantitativa, informa os sujeitos (estudantes, administradores e docentes) sobre o estado do sistema no qual exercem suas atividades e sua própria ação sobre o sistema; compara e hierarquiza estabelecimentos escolares e alimenta a emulação entre eles.

O terceiro princípio refere-se à flexibilidade de gestão, justificado no caso da educação superior, basicamente pela exigência de ampliação do sistema, obviamente, ao menor custo possível . Em nome da flexibilização, estão postuladas a eliminação do regime jurídico único, do concurso público e da dedicação exclusiva para o exercício da docência, favorecendo contratos mais ágeis e econômicos, como os "temporários", "precários" e outras denominações já em vigor. A reformulação curricular em vigor é outro exemplo preocupante de flexibilização dos cursos superiores, pois a permanecerem as motivações do MEC e de algumas "comissões de especialistas" aí instituídas, as tendências apontam para um aligeiramento da duração e baixa da qualidade dos conteúdos fornecidos nos diversos cursos de formação, deixando-se, possivelmente, o aprofundamento de caráter profissionalizante para o nível seguinte - a pós-graduação.

No entanto, o ponto central quando a questão é flexibilizar, encaminha-se no sentido de aceitar e promover uma diversificação das instituições, definir novos tipos de estabelecimentos de ensino, mediante a flexibilização do princípio constitucional da indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. A legislação específica sobre esta matéria aprofundou e "engessou" a já existente convivência entre instituições de diferentes portes, organizadas em torno de objetivos diferentes, fixando para algumas (ou muitas) o propósito exclusivo de preparação de profissionais (o ensino), e para outras, a meta de produção de novos conhecimentos (a pesquisa) aliada à formação de profissionais.

Em quarto lugar, temos o princípio da busca da qualidade do serviço educacional. Aqui, um aspecto merece ser destacado, face as "resignificações" que vêm sendo atribuídas ao termo "qualidade". A promessa de qualidade do modelo gerencial deriva-se da lógica mercantil, constrói-se a partir da competição e fundamenta-se na competência meritocrática. Deste modo, a proposição de melhoria da qualidade do serviço educacional não é e não pode ser universal. Ao contrário, em parceria com o princípio apresentado anteriormente, "remete ao estabelecimento de um rígido sistema de diferenciação e segmentação da oferta educacional (...e só pode...) ser conquistada através da flexibilização dos mercados educacionais" (Gentili, 1995, p.199), tendo por destino concentrar a formação de qualidade em algumas poucas instituições, tratadas como "centros de excelência". Sobre este aspecto é importante destacar as novas políticas de apoio à pesquisa dos órgãos financiadores, como CNPq e FAP’s, as proposições do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX) e o privilégio concedido a certas áreas do conhecimento, consideradas estratégicas para o desenvolvimento (associado) brasileiro, que em conjunto com as propostas governamentais de avaliação institucional "fixam" como e onde pode ocorrer um serviço educacional de qualidade.

O quinto e último princípio refere-se à "descentralização" proposta. Existe uma legislação recente sobre educação, ainda em fase de detalhamento, que evidencia claramente o conteúdo da descentralização gerencial: os principais parâmetros são estabelecidos de forma concentrada num núcleo estratégico e se descentraliza a gestão administrativa, deixando, na realidade, pouca autonomia às diversas instâncias escolares e universitárias. É parte integrante desta lógica, o mascaramento da heteronomia, ou da "autonomia como delegação política" (Lima, 1977), construindo-se uma "ilusão de participação", através do apelo a um maior compromisso e envolvimento dos segmentos educacionais, inclusive no financiamento, ainda que parcial, do sistema.

A CULTURA UNIVERSITÁRIA SOB O MODELO GERENCIAL

Para os defensores desta reforma, a implantação do modelo gerencial passa por duas dimensões: a mudança institucional-legal e a mudança cultural. Na acepção dos planejadores, os projetos da reforma não estão somente dependentes da mudança constitucional e a assunção, por parte dos envolvidos, de um efetivo compromisso com os novos resultados a serem alcançados é vital para o sucesso da empreitada (Nunes, 1996).

Desta forma, restringir a análise ao seu plano formal e jurídico-político encobre parte substancial da proposta e dos seus efeitos sobre o sistema de educação superior. Novas representações sobre a ciência, a tecnologia e o universo simbólico-cultural acadêmico vêm sendo construídas no cotidiano universitário, requerendo nossa atenção, em especial, quanto ao seu aspecto de regulação social (Popkewitz ,1994). Forjam-se ainda subjetividades próprias, que se objetivam como modos singulares de ver, sentir e agir no mundo.

1 ) Construção da lógica do mercado: consumidores e não cidadãos

Um primeiro aspecto a ser destacado quanto às representações construídas na universidade, mais agressivamente a partir dos anos 90, refere-se aos mecanismos que estão sendo utilizados pelas agências governamentais, para operar a indução das universidades ao princípio do mercado. Para a eficácia destes dispositivos é preciso contar-se com um homem novo. "É preciso que os indivíduos introjetem o valor mercantil e as relações mercantis como padrão dominante de interpretação dos mundos possíveis, reconhecendo no mercado o âmbito em que, "naturalmente", podem - e devem - desenvolver-se como pessoas humanas" (Mancebo, 1996).

É bem verdade que contraditoriamente, por vezes, os discursos oficiais têm versado sobre a educação para a democracia e a cidadania, no entanto, uma análise mais global de discursos e práticas mal escondem o propósito de transformar a educação numa agência racionalmente orientada para o mercado de trabalho, para a criação de vantagens competitivas entre os seus sujeitos, para a aprendizagem e a docência individuais, distando de intenções quanto a um possível aperfeiçoamento social.

Deste modo, "construção de sistemas educativos de tipo gerencialista subordinados ao paradigma do governo pelo mercado, baseados em teorias econômicas e de escolha pública, na competição, na eficácia e na eficiência, é orientada muito mais para os consumidores (orientação de mercado ) do que para o reforço dos cidadãos (orientação cívica)" (Lima, 1997, p. 42-43).

A orientação de mercado minimiza, ainda, a necessidade de apelar às restrições éticas (internas) e/ou às juridico-políticas (externas) impostas ao comportamento humano. Esses dois tipos de controle são encarados como limitados quanto à eficiência, diante das possibilidades disciplinadoras do mercado.

Por fim, a construção de sujeitos do mercado, sob a bandeira do homo economicus constitui-se num dispositivo político que induz ao exercício de poder centralizado, sob o já antigo lema de "dividir para melhor controlar".

2 ) Exacerbação do individualismo

Diretamente relacionada à construção da lógica do mercado encontra-se a exacerbação do individualismo. Este ideário não é novo, qual seja, o próprio conceito de indivíduo foi elevado ao nível de bandeira política e realidade econômica pelo liberalismo dos séculos XVII e XVIII, constituindo-se em parcela significativa do imaginário social da modernidade. Vivemos imersos, portanto, numa cultura individualista. Nela nos socializamos e encontramos permanente reafirmação dos valores a ela relacionados. Desse modo, nos é difícil perceber que esta "categoria do espírito humano" (Mauss, 1974) não é inata e sim uma categoria construída histórica e socialmente.

Faz-se necessário, ainda, complexificar este esquema hegemônico, mostrando que no sistema individualista existem várias formas de "individualização": a era do sujeito pleno, unificado e soberano não exclui uma diversidade de formas e destinos (Figueiredo, 1995). Na realidade, podemos localizar, na modernidade, alternativas díspares de construção de subjetividades como a do individualismo liberal, segundo a qual a sociedade é atomizada e os indivíduos deixam-se articular uns com os outros nos espaços "livres" dos mercados de bens e de trabalho; a do individualismo e do coletivismo romântico, que apregoa a exacerbação do auto-desenvolvimento individual em tamanha proporção que os procedimentos da privacidade passaram a se constituir nos próprios organizadores e juízes da vida pública, constituindo o que Sennett (1988) tem denominado "sociedade intimista" e a do racionalismo administrativo, tecnocrático e disciplinar, exemplarmente analisada por Michel Foucault (1983, 1989), de cuja análise depreendemos uma modernidade que domestica os corpos e regula as populações, de modo a maximizar a sua utilidade social e a reduzir, ao mais baixo custo, o seu potencial político.

Estas três construções, a par das suas contradições, encontram-se combinadas, com maior ou menor ênfase no nosso cotidiano e apresentam em comum a noção de que os indivíduos são autônomos, e vivem em permanente contraposição ao social.

Conforme já discutido, a partir do rearranjo capitalista denominado neoliberal, assistimos, no plano político-cultural, a uma constelação ideológica em que o renascimento do mercado e do individualismo aparecem como articuladores nucleares da prática social e das relações que os homens estabelecem entre si. As noções de autonomia, liberdade, iniciativa privada, concorrência, mérito, lucro, dentre outras, têm desempenhado, nestes últimos anos, um papel decisivo na revalidação social e política do ideário liberal original e na concepção de indivíduo aí subjacente (Santos, 1997). No entanto, é preciso destacar que as aspirações de autonomia (liberal), criatividade e reflexividade (românticas) não excluíram a construção de individualidades submetidas intensamente aos dispositivos disciplinares. Em outros termos, vivemos hoje "uma hipertrofia liberal do princípio do mercado, acoplada a uma forte regulação disciplinar, mantidas graças a um processo de dessocialização, privatismo e narcisismo românticos" (Mancebo, 1998).

O racionalismo econômico, cuja suposição básica é a de que os homens se comportam e agem como indivíduos auto-interessados (Peters, 1995) constitui-se numa variante particular dessas construções, própria ao neoliberalismo e ao neoconservadorismo. A soberania dos objetivos individuais implica reconhecer no indivíduo o juiz supremo dos próprios objetivos e os fins sociais se limitam às coincidências que se possam estabelecer entre os objetivos individuais.

Desse modo, o indivíduo é levado a encontrar o sentido do mundo a partir de si próprio, volta-se para a elaboração cada vez mais elaborada de sua própria individualidade, fecha-se em sua particularidade, considerando a liberdade, principalmente, como a possibilidade de cultivar seus interesses privados, conforme as brilhantes análises de Sennett (1988) e Lasch (1983) têm demonstrado.

A educação e a universidade são, com certeza, um desses espaços privilegiados de construção e expressão de indivíduos economicamente orientados, voltados estritamente para suas práticas acadêmicas, competindo entre si pelo crescimento acadêmico, por melhores colocações no mercado intelectual e transformando o investimento pessoal, no motivo central de seu trabalho. Neste ideário, a docência é tomada como uma "empresa de si mesma" (Gordon, 1991) e a universidade arquiteta-se como um agregado de especialistas.

3 ) Fim da cultura pública

Decorrente da exacerbação de valores afeitos às diversas formas de individualismo, advém outra tendência prevalecente da cultura atual e que consiste na difusão de uma invariável indiferença e embotamento social (Rago, 1993).

Na realidade, numa sociedade narcísica e hedonística a exposição pública se converte numa forma de alimentar o próprio ânimo privado. O comum não é mais a meta para a qual convergem as atividades individuais, na busca de um ideal coletivo superior às limitações de cada pessoa. Ao contrário, o pressuposto que embasa a participação pública passa pela expectativa de se encontrar e afirmar as identidades individuais e privadas. Neste contexto, a sociedade, despojada de sua civilidade, é o meio para que o indivíduo atinja seus fins (Mises, 1990).

Em consonância, os grupos que se constituem neste contexto também funcionam como identidades coletivas, qual seja a concretização de um "nós" é baseado no sentimento, nas preferências individuais, o que nega qualquer laço comunitário e político. Em muitas situações, sob a ameaça de sucumbirem, os indivíduos se agrupam, transformando, todavia, os problemas institucionais em questões pessoais e psicológicas e as categorias sociais e políticas em categorias individuais.

Na universidade, esta dinâmica tem ocorrido com certa freqüência. Grupos se organizam de modo falso, serializado, competindo com os demais e seus membros entre si. Desprovidos de um projeto político, ou de consistência teórico-metodológica, no caso de grupos de pesquisa, seus membros apresentam como objetivo central "não sucumbir individualmente" e neste contexto, as universidades sobrevivem contraditoriamente, tomando a feição de grupos não universitários, verdadeiras agências de projetos, como bem destacou Warde (1997).

4 ) Competição e darwinismo social

Um último aspecto que merece ser destacado nesta dinâmica refere-se à "competição administrada". Conforme um dos formuladores conceituais da reforma gerencial brasileira, "este princípio (...) estabelece que a forma mais duradoura de buscar a eficiência no serviço público é a instituição de mecanismos que estimulem a competição na prestação dos serviços públicos (...levando) em conta a redução de custos operacionais, o aumento na qualidade dos serviços prestados, o atendimento de metas, de padrões de desempenho, etc" (Nunes, 1996, p. 10).

A proposta institucional, todavia, implica a produção de subjetividades decididas a "protagonizar as funções essenciais do Estado e do capital, a superassumir a racionalidade neoliberal e tecnoburocrática competitiva", ao mesmo tempo que conduz "lenta mas inexoravelmente, tanto à exaltação hipertrófica de uns poucos (que cada vez são menos) como à mediocrização colaboracionista de mais alguns e à exclusão, desfiliação, precariedade e vulnerabilidade de quase todos" (Baremblitt, 1993, p.4).

Em outros termos, dá-se lugar à aceitação e legitimação de novas formas de discriminação e exclusão social e à naturalização de uma espécie de darwinismo social que vêm gerando uma cidadania de segunda classe, inclusive no interior da universidade .

Além da diversificação mais geral do sistema de educação superior e os decorrentes efeitos de hierarquização, já discutidos em parte anterior deste trabalho, duas situações merecem destaque.

Primeiro, o trabalho docente, hoje comportando professores efetivos e substitutos/precários/temporários, reproduzindo no âmbito da universidade, o que alguns autores (Harvey, 1992, Castel, 1995, por exemplo) têm denominado de um mercado de trabalho diversificado e fragmentado, composto por poucos trabalhadores centrais, estáveis, qualificados e com melhores remunerações e um número cada vez maior de trabalhadores periféricos, temporários, em mutação, facilmente substituíveis. O ingresso nesta segunda zona de exclusão, implica no socius, como na universidade, uma perda da identidade pelo trabalho.

Um outro aspecto que gostaria de destacar, refere-se às presumidas relações de complementaridade entre a pós-graduação e a graduação, que em decorrência das políticas governamentais e das agências financiadoras, cada vez mais se afastam da possibilidade de se constutuírem em espaços complementares, articulados e solidários.

Retomando, a cultura não-cível, a constituição de grupos organizados sob motivações individuais de sobrevivência (no espaço acadêmico e fora dele), a "fraternidade" perversa, empática a um grupo selecionado de pessoas, que evita e expulsa forasteiros, desconhecidos, dessemelhantes, o medo de compartilhar uma zona de exclusão e a aprovação complacente de uma elite intelectual que, pragmaticamente, vem-se adaptando aos novos tempos, têm constituído, no interior da universidade, uma curiosa cultura que ao mesmo tempo aponta para matrizes claramente (neo)liberais e, portanto, individualistas/competitivas/excludentes, convivendo, ao mesmo tempo com a proliferação de mecanismos tradicionais, relacionais, paternalistas e pessoais que comportam por um lado, o corporativismo atávico e autoprotetor, e por outro, o apadrinhamento/clientelismo/protecionismo, uma cultura de submissão aos grandes, do favor generalizado, da ampliação das injustiças e privilégios, cuja virulência é por demais evidente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA LÓGICA PRIVADA À AGENDA DEMOCRÁTICA

A par dos complicados e dolorosos efeitos que estas construções têm gerado no âmbito das subjetividades individuais, que implicações trazem para a universidade?

A principal conseqüência destas políticas, sem dúvida, encaminham-se no sentido da privatização do sistema de educação superior brasileiro, em especial, a universidade pública. Na realidade, as estratégias de privatização são propostas, não apenas como meio de ultrapassar a crise do Estado, mas também como solução considerada imperativa para o alcance de maior eficácia, performance e qualidade nas diversas instituições.

A submissão da universidade aos interesses imediatos do mercado é o principal dispositivo desta construção, conduzindo a universidade pública brasileira a redefinições, de ordem objetiva e subjetiva, que vão desde a privatização dos interesses, propósitos e objetivos universitários, antes públicos, e no possível, definidos coletiva e socialmente; até à privatização da cultura universitária acumulada na prática histórica do trabalho do conjunto dos sujeitos universitários, com a mercantilização do pensar, da elaboração de idéias e do trabalho intelectual; da superioridade inquestionável do individual sobre o coletivo, do sucesso pessoal sobre a solidariedade.

Os riscos de alteração degenerativa das prioridade científicas são evidentes, dentre eles, a condução da universidade "a não ser produtora de conhecimento e sim produtora de informações, digeríveis e suplantadas rapidamente pelo mercado" (Warde, 1997); a escolarização definitiva da graduação e o afunilamento da pós-graduação para preparar pesquisadores cujo desempenho os habilitará a participar de núcleos, institutos e centros de excelência. Em síntese, consiste em levar a idéia e a prática da privatização do público às suas últimas conseqüências (Chauí, 1996).

Especificamente em relação à pesquisa, os critérios de prioridade podem ser substituídos por outros: "relevância econômica e perspectivas de lucros dos temas de investigação; virtualidade destes para criarem novos produtos e processos; probabilidade de serem financiados por empresas sediadas na região da universidade" (Santos, 1997), em síntese, a instrumentalização da ciência e da técnica em benefício dos mais aptos. As áreas de menor comerciabilidade como a das humanidades e das ciências sociais, correm o risco de marginalização.

A quebra das referências éticas acadêmicas é inevitável, em especial, o arrefecimento e desvalorização da produção de conhecimento e análise crítica, quanto à natureza e à destinação social do trabalho feito na universidade (Miraglia Neto, 1994). A reflexão crítica tenderá para o pensamento conformista e submisso dos meios intelectuais e/ou universitários, e a qualidade social para o produtivismo quantitativo.

Neste quadro de referência, dificilmente restará espaço para a democracia e para o exercício da cidadania. "O processo de decisão democrático e participativo tende a ser percepcionado como pouco compatível com as regras e os processos de racionalização, porque é um processo lento e imprevisível, ambíguo e fluido, porque não garante eficácia e porque, no limite, é irracional" (Lima, 1997, p. 46).

Por fim, retirar a educação superior institucionalizada da esfera pública e submetê-la às regras do mercado significa, ao contrário do apregoado por neoliberais, menos autonomia e mais regulação, em especial, um "controle e ‘governo’ da vida cotidiana na exata medida em que transforma nosso trabalho e nossas práticas, num objeto de consumo individual e não de discussão pública e coletiva" (Mancebo, 1998, p. 58).

No entanto, na medida em que a universidade abriga o conjunto das contradições que permeiam toda a sociedade, ela se constitui também num palco das disputas entre grupos e projetos distintos de educação e de sociedade. Deste modo, a resistência a um projeto que se apresenta como o único e inevitável é possível e necessário. Em primeiro lugar, há que se revalorizar o domínio público e as agendas democráticas e de cidadania, no interior das quais a universidade pode ensaiar novos estilos de intervenção, assumindo um compromisso radical com a promoção de sociedades justas e igualitárias.

A abertura da universidade a distintos saberes e práticas é uma decorrência lógica do anterior, cabendo destaque à fertilidade de uma maior aproximação e aliança, sem paternalismos e arrogâncias, em relação aos movimentos sociais que têm construído novas análises e resistências face ao projeto governamental e hegemônico.

A construção de nova cultura política no interior da instituição que, em última instância, pleiteie diferentes qualidades de vida pessoal e coletiva mais assentes na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa é um caminho necessário.

Por fim, considero possível o exercício de novas subjetividades no interior da universidade, construídas no social, para as quais a insegurança, a busca do estranhamento e da diferença signifiquem mais do que tolerância, ou apenas, respeito, mas, sobretudo, a possibilidade de formações rebeldes e criativas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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