A DEMANDA POR VAGAS NO ENSINO SUPERIOR:
ANÁLISE DOS VESTIBULARES DA UFMG NA DÉCADA DE 90
 
Mauro Mendes Braga - UFMG

INTRODUÇÃO

O acesso ao ensino superior permanece como uma questão atual da política educacional brasileira. No texto da Lei 5540/68, que reformou o ensino superior no período militar, o vestibular unificado e classificatório tornou-se a forma única de acesso, inserida dentro do conjunto de medidas destinadas a enfrentar o aumento da demanda que se verificou na década de 60. Assim estabelecido, o vestibular tornou-se um mecanismo importante para solucionar o problema dos "excedentes", que o modelo de vestibular anterior permitia.

A atual Lei de Diretrizes e Bases, que tem a flexibilidade como um de seus eixos (Cury, 1997), não estabelece um tipo único de seleção e permite experimentar novos modelos. Em decorrência, novas modalidades de seleção estão sendo propostas, debatidas e praticadas, paralelamente ao questionamento dos processos antigos em vigor.

A demanda por vagas é, sem dúvida, uma questão crucial no que concerne ao acesso ao ensino superior, tendo recebido tratamento diferenciado no transcorrer da história mais recente. Na década de 60, a expansão da demanda e a escassez de vagas acarretaram o problema dos "excedentes" acima referido, bem como a necessidade do estabelecimento de critérios para regular a necessária ampliação de vagas. No final da década de 70 e início dos anos 80, duas questões ganharam relevância: a retração da procura no setor privado e a existência de considerável número de vagas ociosas no setor público.

Na década de 90, o aumento expressivo do número de estudantes que concluem o ensino médio e os novos desafios da educação no contexto de economias globalizadas trazem para o debate a perspectiva de expansão da cobertura do sistema de ensino superior. O objetivo das autoridades é fazer com que o país saia do modesto patamar de 12% de jovens entre 18 e 24 anos que se encontram matriculados nesse nível de ensino, ampliando-o para além dos 30%, em curto prazo. Assim, vista como "sintoma de desajuste do nosso sistema de ensino" para atender à necessidade de profissionais qualificados nas décadas de 60 e 70 (Franco,1985: 16), a demanda pelo ensino superior vai se converter, na segunda metade da década de 90, em componente do projeto educacional do governo, no qual se inclui a reforma da educação superior (MEC/1996).

Os autores deste artigo desenvolveram pesquisa relativa à evasão na UFMG e, nessa ocasião, foram consideradas as características sócio-econômicas dos candidatos ao vestibular. A partir daí, buscaram realizar estudo específico abordando a demanda pelo ensino superior nesta universidade, uma das maiores universidades brasileiras e que está diante da perspectiva de, a curto prazo, ter uma demanda de cem mil candidatos. Uma reflexão sobre o comportamento dessa demanda na última década torna-se importante, não só para avaliar e reformular seu processo de seleção, mas também como contribuição ao debate nacional deste tema, buscando encontrar mecanismos que, centrados no exame de mérito dos candidatos, tenham qualidade técnica e não acentuem as desigualdades sociais.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Foram considerados os concursos vestibulares da década de 90, tendo sido as informações necessárias ao estudo obtidas junto a Comissão Permanente de Vestibular. Os dados sócio-econômicos resultam de questionários preenchidos pelos candidatos, à época que se inscreveram para o concurso e só estão disponíveis para o período 92/99.

Foi construída uma escala FSE (fator sócio-econômico), para descrever o perfil sócio-econômico dos candidatos. A escala varia de zero a dez e contempla as seguintes variáveis: tipo de escola e curso médio freqüentado, turno de conclusão do ensino médio, situação de trabalho ao inscrever-se, renda familiar, nível de instrução dos pais e tipo de profissão do responsável. Para cada estudante em particular, a escala é discreta, sendo tanto melhor a situação sócio-econômica quanto maior o valor de FSE. Os valores médios calculados para grupos de estudantes, no entanto, foram tomados com variação contínua. Esta escala FSE é diretamente proporcional a outra escala sócio-econômica, construída por Soares (1998) com base no sistema de classificação da Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisas de Mercado, com correlação superior a 0,95.

Tendo em vista as diferenças expressivas observadas entre os perfis dos candidatos para um mesmo curso, quando ofertado nos turnos diurno e noturno, foram utilizados os conceitos carreiras e cursos. Carreira corresponde a uma determinada área do conhecimento que leva a um diploma de graduação, enquanto que a denominação de curso identifica o turno de oferecimento, sendo que quando funcionam em um único turno, curso e carreira se confundem. Assim, por exemplo, a UFMG oferece a carreira de Administração com dois cursos, o diurno e o noturno e oferece a carreira/curso de Medicina.

Para diversas das aqui comparações efetuadas julgou-se conveniente agrupar as informações referentes ao conjunto dos cursos de Engenharia. Neste caso, os dados agrupados foram referidos como pertinentes à carreira de "Engenharias". Eventualmente esses dados foram apresentados concomitantemente com as informações correspondentes de cada curso específico dessa carreira. No que se refere ao perfil sócio-econômico, entretanto, as informações referem-se exclusivamente às Engenharias, uma vez que há homogeneidade neste perfil para 5 dos seus 7 cursos, sendo que para os outros 2, Minas e Metalurgia, as diferenças frente aos demais não são tão grandes.

ANÁLISE DOS DADOS

A demanda para os cursos de graduação na UFMG dobrou na década de 90, conforme ilustra a Figura 1. O aumento foi gradual, embora tenha ocorrido em alguns anos uma estabilização, até mesmo, uma retração da procura. No período 90/93, a demanda oscilou em torno de 30.000 candidatos, patamar já alcançado no início da década de 80. Só a partir de meados dos anos 90 a tendência de crescimento consolidou-se.

O crescimento da demanda reflete, em parte, o aumento no número de concluintes do ensino médio em Minas Gerais, ilustrado na figura 2. Quase todo ele ocorreu na rede pública, determinando uma alteração significativa no perfil da demanda por vagas na UFMG, como será discutido mais adiante. Considerando-se as políticas implementadas pelo estado de Minas e a ênfase da União na busca por maior eficiência no ensino fundamental, as tendências de crescimento da rede pública e de estabilização da rede privada deverão se acentuar mais ainda nos próximos anos.

Embora o aumento da demanda decorra do crescimento do número de concluintes do ensino médio, não há proporcionalidade direta entre essas variáveis. Em geral, a procura cresce a uma taxa bem menor do que o número de estudantes que concluem o ensino médio. Em alguns anos, observa-se até uma queda no número de candidatos, mesmo tendo ocorrido um significativo acréscimo naquele número de concluintes.

Medidas no âmbito da universidade também refletem-se na demanda, conforme ilustra a tabela 1, que mostra que a criação de cursos e o aumento de vagas e de facilidades para a inscrição ou para a realização das provas estimularam a procura. Em 1994, por exemplo, o número de concluintes do ensino médio cresceu 14 %, enquanto que a demanda aumentou quase 20 %, em decorrência da abertura de cursos noturnos de licenciatura. Nos dois anos anteriores e subsequentes a 1994, ainda que o número de concluintes do ensino médio tenha crescido em percentuais não inferiores a 14 %, a demanda por vagas ou decresceu ou registrou crescimento muito inferior aos 20 % daquele ano.

O crescimento da procura não foi acompanhado por aumento correspondente da oferta, conforme mostra a tabela 2. Em conseqüência, a relação candidato/vaga média cresceu de cerca de 9,0 em 1990, para mais de 15,0 em 1999. Além disto, a maior oferta de vagas nem sempre ocorreu nas áreas onde o crescimento da procura foi mais significativo. Acentuou-se o desequilíbrio entre demanda e oferta na área biológica, enquanto que na de exatas a oferta cresceu mais do que a procura. Em conseqüência, a relação média candidato/vaga na primeira área aumentou mais de 100 %, passando de menos de 11 para mais de 23, enquanto que na segunda esse aumento foi bem menor, indo de cerca de 7,5 para 10.

O aumento do interesse pela área de ciências biológicas e o contraponto da perda de prestígio da área de ciências exatas parecem ser fenômenos universais. Em entrevista ao Jornal do Brasil o Professor Jacob Pallis, talvez o matemático de maior prestígio científico do Brasil, apontou a Biologia como a ciência do próximo século, prognosticando que ela viria a ocupar a posição central que a Física ocupa há 150 anos.

Além disso, estudos realizados em várias universidades dos Estados Unidos indicavam, já em 1995, a rejeição de boa parte dos jovens americanos, sobretudo as do sexo feminino, para com as carreiras da área de exatas. Também na Europa há perda de prestígio das carreiras desta área e bolsistas de graduação brasileiros de Engenharia estão recebendo convites para permanecerem na Alemanha, após a conclusão do programa de intercâmbio.

Na área de artes, por outro lado, houve um acentuado aumento percentual da procura, mas este fato deve ser visto com cautela, uma vez que a demanda por esta área ainda é muito baixa: apenas 1 % dos candidatos procuraram seus cursos em 1999. Por sua vez, a área de ciências humanas acompanhou as mudanças observadas na universidade como um todo, seja em termos da demanda ou da oferta de vagas e cursos. A relação média candidato/vaga para esta área, assim como para a universidade, passou de 9,0 para 15,0.

Analisando-se apenas as carreiras que ofereceram vagas em toda a década, observa-se, no que se refere à variação da demanda, a presença de três grupos distintos, conforme ilustrado na figura 3. O primeiro é composto pelas carreiras cuja procura encontra-se em declínio ou vêm aumentando em proporção bem inferior à média; o segundo, por aquelas cujo comportamento tende a reproduzir o padrão mediano observado para a UFMG; e o terceiro, as carreiras cuja demanda cresceu bem acima do padrão médio.

O primeiro grupo é constituído basicamente por carreiras da área de exatas, em particular os cursos de Engenharia, e por aquelas das "ciências gerenciais". Os cursos de Odontologia e Filosofia são exceções nesse conjunto. O segundo grupo é constituído por carreiras que podem ser englobadas em duas categorias: aquelas vinculadas a cursos de baixo prestigio social da área biológica e aquelas que se destinam, pelo menos em parte, a formar profissionais para a educação básica, fugindo a essas características Biblioteconomia e Engenharia de Minas. Neste último curso, o crescimento expressivo da demanda foi fortuito, porque sua procura variou de forma irregular na década, sendo atipicamente elevada em 1999. Se se comparam as duas metades da década (90/94 e 95/99), verifica-se que a demanda para este curso cresceu abaixo da média da universidade.

As carreiras que registraram grande aumento de procura não foram aquelas de elevado prestígio social ou de alta relação candidato/vaga. Conforme mostra a figura 4, para todas as carreiras cujo aumento de procura superou a duas vezes a média da UFMG, a relação candidato/vaga foi inferior, e geralmente bem inferior, à média da universidade.

As carreiras para as quais a relação candidato/vaga se aproxima ou supera à média da UFMG geralmente registraram crescimento de demanda próximo à média da universidade. Para dois deles, Administração e Odontologia, a procura foi numericamente estável ao longo da década, o que resultou em acentuado decréscimo relativo da demanda; para um terceiro, Fisioterapia, o aumento da procura foi cerca de duas vezes maior do que a média. Para as carreiras de elevado prestígio social, como Direito, Computação, Medicina e Odontologia a demanda, quando muito, aumentou em taxas similares à da UFMG.

A tabela 3 compara a evolução do número de cursos, de vagas e da procura das carreiras que formam professores para o ensino médio com aquela referente às carreiras que não formam estes profissionais. Observa-se a prioridade que vem sendo dada pela universidade aos cursos que licenciam professores: 2/3 dos novos cursos e mais de 1/3 das novas vagas foram destinadas a estas áreas. A procura de vagas nessas carreiras, por sua vez, cresceu 2,5 vezes mais do que nas demais. A relação candidato/vaga média nas carreiras que oferecem licenciatura passou de menos de 4 para mais de 9, enquanto que nas outras evoluiu de pouco mais de 12 para cerca de 18,5. Embora o crescimento da procura tenha sido superior e na maioria dos casos muito superior à média da UFMG, para todas as carreiras que oferecem a habilitação licenciatura a relação candidato/vaga correspondente não aumentou na mesma proporção, uma vez que foi exatamente nessa área que a oferta de cursos e vagas mais cresceu.

O crescimento da procura pela licenciatura está associado a diversos fatores. Por um lado, o país atravessa uma crise econômica, com aumento das taxas de desemprego, enquanto que a rede pública de ensino tem se expandido, oferecendo empregos para professores, ainda que com salários relativamente baixos. A própria política educacional tem enfatizado o papel do professor no atual contexto educacional, quer seja por meio dos princípios fixados na LDB, com relação às novas exigências de titulação docente para o exercício do magistério, quer seja através de mecanismos de financiamento, como o FUNDEF.

Parte desta mudança de perfil na procura por vagas pode ser explicada quando se consideram as características sócio-econômicas dos candidatos ao vestibular, sintetizadas na escala FSE. Julga-se conveniente realçar ainda nesta análise, uma das variáveis utilizadas para a construção desta escala: o percentual de candidatos que concluíram o ensino médio em escola pública.

A tabela 4 coteja, por carreira, a procura por vagas na UFMG nos anos de 1992 e 1999, em relação a estes aspectos. Verifica-se que, para a UFMG, o valor médio de FSE não se alterou, enquanto que o percentual de concorrentes de escolas públicas cresceu cerca de 10 %. O fato do valor médio de FSE praticamente não ter se alterado, no entanto, não indica que a proporção dos candidatos pertencentes à classe média baixa tenha sido aproximadamente constante no período. O que está ocorrendo é que a condição sócio-econômica dos candidatos mais privilegiados está melhorando, compensando, no valor médio de FSE, o aparecimento de uma maior fração de candidatos oriundos dos estratos inferiores da classe média, como pode ser observado na figura 5.

A variação da concorrência relativa mostra alguma associação com a da escala FSE. Em geral, o aumento expressivo da concorrência está associado a um decréscimo no valor médio de FSE, levando a crer numa democratização da procura. O inverso, entretanto, não é observado e uma significativa diminuição da concorrência pode estar associada tanto a um decréscimo como a um aumento de FSE. No caso das carreiras ligadas às "ciências gerenciais" e das engenharias, o decréscimo de procura está geralmente associado a uma diminuição do valor médio de FSE, ou seja, estas carreiras estão deixando de ser procuradas preferencialmente pelos concorrentes de melhor perfil sócio-econômico. Já para Direito, Odontologia e Veterinária observa-se o inverso: elas estão deixando de ser procuradas justamente pelos candidatos menos favorecidos sócio-economicamente.

Situação similar é observada quando a variação da concorrência relativa é cotejada com o percentual de candidatos oriundos da escola pública. Administração, C. Contábeis, C. Econômicas e Engenharias, carreiras cuja concorrência relativa sofreu pronunciado decréscimo, registraram também aumento significativo da fração de candidatos oriundos da escola pública. Odontologia e Veterinária, carreiras para as quais a concorrência também decresceu, vivem situação diversa, diminuindo a fração de candidatos da escola pública.

As observações dos últimos parágrafos sinalizam a existência de uma seletividade social associada à escolha da carreira. Essa suposição é reforçada ao se comparar os valores médios de FSE para as diversas carreiras (ver figura 6). As carreiras de elevado prestígio social registram médias que se aproximam de 6,0, enquanto que nas de baixo prestígio social, em particular aqueles que oferecem a habilitação licenciatura, esta média chega a ser inferior a 3,0. Essa seletividade social se aguçou ao longo da década: em geral as carreiras com maiores médias de FSE em 1992 apresentaram aumento desta média em 1999, enquanto que para aquelas com menores valores de FSE ocorreu o inverso. Nove das dez carreiras de maiores médias de FSE em 1992 permaneceram assim em 1999, o mesmo ocorrendo com as dez carreiras de menores médias de FSE.

Na mesma direção observa-se também que, em muitas carreiras, a demanda é essencialmente das escolas públicas, enquanto que em outras ocorre o inverso. Em apenas cinco carreiras – Medicina, Odontologia, Veterinária, Fisioterapia e Comunicação Social – verificou-se um decréscimo do percentual de candidatos oriundos da escola pública. Em todas elas, a fração de concorrentes da escola pública já era pequena em 1992, confirmando que a seletividade social na escolha da carreira está se tornando mais intensa.

Convém realçar que não estamos falando da seletividade social associada ao sucesso no vestibular, um tema que abordaremos em outro trabalho. Estamos tratando aqui de processo seletivo intrínseco a estudantes que reconhecem não ter condições de concorrência em cursos de maior prestígio social. Aqueles que desconhecem essa realidade pagam um custo elevado por sua desinformação. A título de exemplo, mencionamos que, para o período 1992/1999, no curso de Direito, de cada oito candidatos com FSE maior do que 7, um foi aprovado, enquanto que, entre os candidatos com FSE menor do que 3, apenas um em cada cem é bem sucedido. Já no curso da Enfermagem, estes dois grupos de estudantes têm chances de aprovação similares e a cada treze concorrentes um é aprovado.

Ainda como exemplo, é interessante cotejar o que ocorre, em relação a este aspecto, com as carreiras de Direito e Medicina, ambas preferencialmente procuradas por candidatos da classe média alta. Entre os candidatos, a diferença do FSE médio é significativa e alcança a quase 20 %, enquanto que para os aprovados ela não chega a 3 %. O que ocorre é que o percentual de candidatos de Medicina com FSE menor do que 3 é de apenas 10 %, enquanto que para Direito, é de 20 %. No entanto, em ambas as carreiras, as chances de sucesso destes candidatos são muito pequenas: cerca de 1,0 % para Direito e de 1,4 % para Medicina. Ou seja, os jovens das classes menos favorecidas cada vez mais compreendem o grau de dificuldade que têm para lograr aprovação no curso de Medicina e dirigem sua demanda para outros cursos da área de saúde, em especial Enfermagem e Ciências Biológicas, nos quais a sua chance de sucesso é bem maior. Já em relação ao curso de Direito, parte destes estudantes ainda mantém a esperança de estudar na UFMG mas, como vimos, para 99 % deles isto não passa de uma ilusão.

A seletividade social associada a escolha de carreira é também ilustrada na figura 7, na qual são comparados os histogramas de FSE para as carreiras de Direito, Medicina, Matemática e Pedagogia. O quartil 1 corresponde aos candidatos cujas famílias pertencem aos estratos sociais menos favorecidos. Os dados apresentados não deixam dúvidas quanto a esta seletividade.

Em síntese, a alteração do perfil da demanda na década parece estar associada a três fatores. O primeiro deles é o aumento da proporção de candidatos da classe média baixa. Esses estudantes parecem estar conscientes de que a sua chance de êxito é pequena, caso escolham carreiras mais tradicionais ou melhor conceituadas quanto às perspectivas de ganhos financeiros. Sendo assim, optam por carreiras de menor prestígio, como aquelas que oferecem a habilitação licenciatura, para as quais concorrem com razoável probabilidade de sucesso. Talvez eles avaliem que estas carreiras tornarão possível consolidar um processo de mobilidade social em relação às suas famílias, hipótese que mostrou-se verdadeira em estudo anteriormente realizado com os graduados em Química pela UFMG.

O segundo destes fatores refere-se à perda relativa de prestígio de algumas carreiras, em especial as engenharias e aquelas associadas às "ciências gerenciais", que parecem estar sendo rejeitadas exatamente pelos candidatos de melhor perfil sócio-econômico. Finalmente, no caso das carreiras ou de grande prestígio social ou que projetam a imagem de possibilitar elevados rendimentos, verifica-se uma diminuição da fração dos candidatos de situação sócio-econômica menos favorecida. Para as carreiras de Medicina, Fisioterapia, Direito e Comunicação Social, tal fato é compensado por uma concorrência cada vez maior dos estudantes pertencentes às famílias de maior poder aquisitivo, de tal forma que elas mantêm um aumento de procura próximo à média da UFMG. Já no caso de Veterinária e, sobretudo, Odontologia, essa compensação é apenas parcial, e a melhoria do perfil sócio-econômico dos candidatos é acompanhada por um expressivo decréscimo da demanda.

A figura 1 mostra que as mulheres, que já eram maioria entre os concorrentes em 1990, consolidaram esta prevalência ao longo da década, aumentando a sua proporção entre os candidatos de 55 para 59 %. Em média, o percentual de estudantes do sexo feminino que, no período considerado, se inscreveram para o vestibular da UFMG foi de 58 %.

As mulheres concentram a procura nas carreiras das áreas biológica e de humanas, conforme ilustrado na figura 8, sendo geralmente pequeno o seu interesse pela área de exatas. Em todas as nove carreiras da primeira área, a percentagem de candidatos do sexo feminino ultrapassa a 50 %, sendo que em seis delas é maior do que 58 %. Na área de humanas, que envolve 13 carreiras, a concorrência feminina supera a masculina em oito delas, sendo que em seis, supera também o percentual médio de mulheres no conjunto da universidade. Nas ciências exatas, do total de 16 carreiras somente para 4 a proporção de mulheres é maior do que a de homens, sendo que em apenas uma elas superam a fração de 58 %. Ressalte-se que dentre as quatro carreiras da área de exatas para as quais as mulheres se inscreveram em maior número do que os homens, encontram-se duas que guardam uma certa proximidade com a área biológica: Engenharia Química e Química.

Ao longo da década, o interesse de homens e mulheres por cursos da área biológica aumentou, como mostra a figura 9. Em 1999, quase a metade das mulheres optaram por carreiras desta área, enquanto que mais de 40 % escolheram carreiras de humanas, reduzindo-se ainda mais o já pequeno interesse observado em 1990 pela área de exatas. No caso dos homens, a procura foi, em todo período, mais ou menos equilibrada entre as três áreas, equilíbrio esse que tornou-se mais nítido no final da década.

Dentre os fatores que contribuíram para o aumento da demanda destaca-se a abertura de cursos noturnos. Em 1990 a UFMG ofertava apenas três cursos no período da noite, tendo criado outros oito ao longo da década, contra quatro no diurno. O mesmo ocorreu em relação à oferta de vagas: mais de 2/3 das abertas neste período foram criadas à noite. Seria, portanto, natural que a universidade passasse a ser procurada em maior proporção por aqueles estudantes que não podem freqüentar aulas durante o dia. Sobretudo se a isto se acrescentar que o aumento do número de concluintes do ensino médio se deu principalmente na rede pública e, muitas vezes, em cursos noturnos. O fato é que enquanto a dos cursos diurnos cresceu 95 %, a dos noturnos aumentou em 177 %.

A concorrência para os cursos oferecidos no turno da noite, quando comparada àquela dos cursos diurnos correspondentes, apresenta perfil sócio-econômico de estratos menos favorecidos, conforme pode ser verificado nas figuras 10 e 11, nas quais a comparação é feita exclusivamente no espaço de tempo em que as carreiras foram oferecidas em ambos os turnos, estando este período discriminado após o nome das carreiras. As diferenças são expressivas, podendo-se afirmar que, pelo menos no caso da UFMG, mesmo sem conhecer a informação correspondente para o conjunto dos alunos da universidade, a abertura de cursos noturnos está contribuindo para democratizar o acesso ao ensino superior público.

A carreira de Administração é o melhor exemplo disto. A média de FSE para o curso diurno supera inclusive aquela observada para Arquitetura e Medicina. Quando consideram-se cursos, o de Administração é o que apresenta o maior FSE. No entanto, se os cursos diurno e noturno de Administração são tomados em conjunto, o valor de FSE para a carreira cai expressivamente - de 6,3 para 4,7 - de tal forma que esta média, em ordem decrescente, é agora apenas a 14a do conjunto das carreiras. Da mesma forma, o percentual de candidatos de escolas públicas no noturno supera à média da universidade, que foi de 47 %,  enquanto que, no diurno, ele é inferior ao observado para Medicina.

Quanto se compara a concorrência das carreiras que oferecem cursos noturnos, há duas situações diversas. No caso das "ciências gerenciais", os cursos noturnos já eram ofertados na década passada e a sua procura, em termos numéricos, praticamente não se alterou em dez anos. Resulta daí uma queda expressiva da concorrência relativa, conforme já observado. Neste caso, talvez o que tenha sido determinante para essa variação da demanda tenha sido a perda de prestígio destas carreiras, ainda que a de Administração mantenha-se como uma das que apresentam maior relação candidato/vaga. As outras carreiras que oferecem cursos à noite são vinculadas à licenciatura e, salvo em História e Pedagogia, o curso noturno só passou a ser ofertado na década de 90. Aqui, o grande crescimento observado na procura provavelmente foi influenciado pela abertura do turno da noite, tanto assim que, na maioria deles, a concorrência à noite supera à do dia.

CONCLUSÕES

Durante a década, ocorreram expressivas alterações na demanda pelos cursos de graduação da UFMG. É possível que essas mudanças, em suas linhas gerais, apresentem componentes que não sejam específicos desta universidade ou do estado de Minas Gerais. Acreditamos que este processo de mudança forneça subsídios importantes para as políticas de ensino superior no país, em especial no que se refere à oferta de vagas e às formas de ingresso.

Assim sendo, parece que estão se delineando de forma nítida, as seguintes tendências na procura pelo ensino superior público:

  1. crescimento exponencial da demanda, centrada em candidatos oriundos da rede pública do ensino médio e pertencentes a famílias com baixo poder aquisitivo;
  2. ao mesmo tempo, aumenta também a fração de candidatos provenientes de famílias com elevado poder aquisitivo, o que resulta, naturalmente, numa menor percentagem de candidatos pertencentes a famílias com situação sócio-econômica mediana;
  3. o aumento mais acentuado da procura está localizado nos cursos da área biológica, naqueles que oferecem a habilitação licenciatura e nos que funcionam à noite;
  4. perda progressiva de interesse pela área de exatas, excetuados os cursos de licenciatura, e pelas carreiras da "área gerencial";
  5. concentração dos candidatos de alto poder aquisitivo em cursos de elevado prestígio social, para os quais só conseguirão ser selecionados os que obtiverem excelente rendimento nas provas; preferência dos concorrentes da classe média baixa por cursos de baixo prestígio social, nos quais pode-se obter a vaga com desempenho mediano;
  6. a abertura de cursos noturnos, observada sobretudo a partir de 1994 e nas áreas de licenciatura, produziu uma maior democratização no acesso ao ensino superior público.
Este cenário enseja algumas reflexões sobre o acesso ao ensino superior público. O vestibular tem sido visto como um filtro social em si mesmo. Não é raro atribuir-se a este exame a culpa pela alto grau de seletividade social que, inegavelmente, associa-se à admissão de estudantes para o ensino superior público. O que vimos neste trabalho foi que esta seletividade atua, sobretudo, no momento da escolha da carreira. São poucos os candidatos que desafiam a hierarquia não escrita dos cursos e carreiras.

Diversas alternativas têm sido propostas para minimizar esta seletividade social e algumas delas podem ter efeito contrário ao desejado, potencializando a sua ação. Isto é certamente o que pode ocorrer com o vestibular por áreas, caso a escolha das áreas não respeite esta hierarquia não escrita. O vestibular da UFMG de 2000 pode ser tomado como exemplo. Se os cursos de Direito e Biblioteconomia estivessem agrupados em uma mesma área para efeito de seleção, não seria aprovado sequer um dos candidatos que optaram por Biblioteconomia, cujo perfil sócio-econômico, ao contrário dos inscritos para Direito, é de classe média baixa. Situação similar ocorreria com diversos outros cursos, em especial os cursos noturnos e os que oferecem a habilitação licenciatura, exatamente aqueles que admitem, em maior proporção, candidatos oriundos da escola pública.

Pode-se argumentar que o modelo de seleção atualmente adotado pela UFMG reserva para os candidatos pertencentes às famílias de pior estrato social as vagas dos cursos que são rejeitados pela classe média alta. É verdade. No entanto, essa situação é melhor do que a de anos atrás, quando estes estudantes sequer chegavam a bater às portas da universidade. Isto é também socialmente menos injusto do que recusar candidatos que desejam cursar Biblioteconomia, admitindo em seu lugar outros que, em larga escala, usarão a Biblioteconomia apenas como um "cursinho", para facilitar o seu ingresso em Direito. Assim, correr-se-ia o risco de, além de elitizar ainda mais o acesso ao ensino superior público, diminuir a sua eficiência, aumentando o custo por aluno formado.

Outra alternativa de seleção é a avaliação seriada, que requer entre três e seis baterias de provas. Para os candidatos de menor poder aquisitivo, trata-se de uma verdadeira corrida de obstáculos, sobretudo quando necessitam deslocar-se para outra cidade. Este modelo igualmente aumenta as chances dos que podem se preparar em "cursinhos". Reservar uma fração das vagas para quem pode submeter-se à avaliação seriada talvez seja uma decisão que aguce mais seletividade social.

O desafio de tornar socialmente mais justo o acesso ao ensino superior público requer medidas de lenta maturação e de significado mais profundo do que alterações cosméticas aplicadas no processo de seleção. Um pedaço deste caminho vem sendo percorrido, se considerarmos que o substancial aumento de vagas ocorrido no ensino médio público contribuiu para minorar esta dívida. Do mesmo modo pode-se considerar a abertura de cursos noturnos e o aumento de vagas nas licenciaturas. A manutenção de programas adequados de apoio aos estudantes carentes no ensino superior, para evitar que, após vencer a barreira do acesso, eles venham a sucumbir às dificuldades da permanência é outra medida importante. Uma alternativa ainda pouco explorada e que merece ser considerada é a organização de bons cursos pré-vestibulares para candidatos de baixa renda ou que provêm de minorias da sociedade, dado que grande parte dos candidatos fazem o vestibular mais de uma vez e que um pré-vestibular de bom nível cobra mensalidades elevadas.

Todas estas medidas podem reduzir, e estão reduzindo, a interferência dos fatores sócio-econômicos na seleção para o ensino superior público. O seu alcance, entretanto, é limitado e poderá vir a ser anulado pela adoção de processos de seleção equivocados. Enquanto persistirem as enormes desigualdades sociais no nosso país, enquanto o sistema de ensino acentuar essas desigualdades oferecendo ensino de qualidade diferenciada para distintos estratos sociais, será muito difícil que os filhos de famílias humildes venham a se tornar médicos ou advogados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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